Julgamento de Nuremberg. À frente, de cima para baixo: Hermann Göring, Rudolf Heß, Joachim von Ribbentrop, Wilhelm Keitel. Atrás, de cima para baixo:Karl Dönitz, Erich Raeder, Baldur von Schirach, Fritz Sauckel.
Julgamento em Nuremberg
Epílogo da tragédia
Nuremberg foi palco dos maiores triunfos nazistas. As reuniões do partido; as leis raciais; os mais importantes discursos de Hitler. Mas em 1946 o regime nazista estava extinto; Hitler morto e Nuremberg em ruínas. Mas a cidade voltava a despertar a atenção mundial, com vinte e um homens, abatidos, respondendo pelos mais horríveis crimes da História. NêmesisO espetáculo dos líderes alemães depostos, tendo suas vidas submetidas a julgamento, dá ao mundo imediato do pós-guerra um dos maiores assuntos de conversa. Esse não foi o primeiro procedimento judicial dessa espécie da História, pois outros já haviam sido responsabilizados por infringirem as regras da guerra. O julgamento de Nuremberg, no entanto, realizou-se em escala sem precedentes, e logo tornou-se claro que os crimes com que o tribunal estava lidando eram de magnitude incomparável. Criticam-no, nos últimos anos, especialmente sob os aspectos que tratam das duas primeiras categorias de delitos incorporadas à Carta do Tribunal Militar Internacional, ou seja, "Crimes contra a Paz" (planejar ou travar guerra de agressão, ou guerra que viole tratados internacionais) e "Crimes de Guerra" (violação das leis ou costumes de guerra). Brados de "hipocrisia!" têm ecoado entre os pacifistas militantes, nos casos de Suez, Hungria e Tchecoslováquia, especialmente - e de modo injusto - durante toda a prolongada agonia do Vietnã, com respeito à ação aliada na primeira categoria, ao passo que a probabilidade de "crimes de guerra" terem sido cometidos pelos vencedores e, assim, escapando ao castigo destinado aos derrotados, sempre preocupou a consciência de homens racionais, especialmente dos que já viveram a tensão e o calor da batalha. O que em geral não se observa, e que o Dr. Kahn torna claro em sua avaliação calma e lúcida dos eventos de que trata, é que os membros do tribunal estavam igualmente cônscios da possibilidade de se transformar em arma de dois gumes qualquer condenação que pudessem pronunciar sobre o assunto "conspiração para fazer guerra" e, mais ainda, das pressões da batalha sobre todos os que dela participam. Como resultado disso, dos vinte e dois homens que se sentaram no banco dos réus em Nuremberg, os onze que foram condenados à morte também haviam sido considerados culpados de delitos incluídos na quarta categoria - "Crimes contra a humanidade." A lista das monstruosidades cometidas pelos líderes da Alemanha nazista que, sem qualquer sombra de dúvida, se enquadram nesta definição é um catálogo de horrores. O Juiz Jackson, ao sintetizar o libelo acusatório, assim iniciou: Nenhum meio-século testemunhou massacre em tal escala: crueldades e desumanidades inimagináveis, condenação de povos inteiros à escravidão, aniquilamentos de minorias. O terror de Torquemada se eclipsa diante da Inquisição Nazista. Não era crível que os responsáveis pela tortura, humilhação e morte de tantos homens e mulheres na maneira esboçada pela acusação (e que não foi negada pela defesa) escapassem ao castigo. Sob este aspecto, a escala do crime por certo é moralmente condenável. Há alguns anos desenvolve-se uma escola de propaganda pró-nazismo que vem tentando reabilitar a repulsiva filosofia que a consciência do mundo rejeitou, afirmando que "a questão da eliminação dos judeus tem sido flagrantemente exagerada. Seis milhões de judeus mortos nos campos de concentração? Sabemos agora que não pode ter havido mais de cem mil!" Se apenas dez seres humanos morreram como resultado do trabalho da máquina de extermínio instalada em Auschwitz ou Treblinka, então os condenados à morte em Nuremberg foram plenamente merecedores da pena que receberam, e a história da nação liderada por esses homens maculou-se para todo o sempre. Para aquele que foi atirado à asfixia no interior da notória casa de banhos em Auschwitz, a idéia de que era apenas um entre muitos milhares não serviria para aliviar-lhe o desespero e agonia. E, naquela época, o assassinato - cometido seja lá como fosse - era em todo o mundo considerado crime capital. O apelo à retroação da lei é apenas pretexto, e nada mais que isso, para confundir e mistificar. Homens que tramam degradar, torturar e matar devem aprender que a sua vida não é mais valiosa que a da criatura que pretende eliminar, por mais insignificante que ela possa a seus olhos parecer. O homem nascido no seio de uma raça que em certo momento se torna pouco respeitada oferece menos perigo para o mundo que aquele que integra uma raça imbuída de uma filosofia de ódio ou desprezo. O Tribunal Militar em Nuremberg proporcionou um julgamento e uma condenação justos aos que foram levados à sua presença. Talvez algumas das sentenças de prisão fossem demasiado brandas ou demasiado severas, mas, como o juiz francês, Donnedieu de Vabres, afirmou com a lógica tradicional - embora agora talvez um tanto incomum - em seu país: A sentença, no caso de grandes criminosos de guerra, é a expressão da justiça humana, portanto, relativa e falível. Ela reflete, como é normal, a boa-fé, a competência, e talvez também os preconceitos dos seus autores. Talvez não seja idêntica ao julgamento da História ou ao julgamento de Deus. Contudo, as distinções e matizes que contém, e sua moderação relativa, provam que, pelo menos, não é a expressão de uma justiça empenhada em vingança. Os que estão dispostos a encontrar apenas falhas nos julgamentos de Nuremberg deveriam pensar nas alternativas. Mussolini foi linchado e pendurado pelos calcanhares ao lado de sua amante relativamente inocente; aviadores aliados foram vítimas de linchamentos realizados por turbas alemãs durante a guerra, e mulheres alemãs foram estupradas por soldados aliados de todas as raças, a pretexto de vingança. Não fosse o fato de os julgamentos dos culpados terem sido proclamados - e realizados em Nuremberg com objetividade suficiente para demonstrar sua integridade - a vingança indiscriminada ter-se-ia descarregado sobre toda a Europa, com uma resultante de hostilidades que lembram as da Sicília e que atribulariam o mundo durante gerações. Singularmente, os que condenam o que se fez em Nuremberg não têm apresentado qualquer alternativa para ó que ali se passou. Limitam-se apenas a criticar. |
Origens do julgamento de Nuremberg Durante muitos meses de 1945 e 1946 o julgamento dos grandes criminosos de guerra em Nuremberg fascinou o mundo inteiro. Havia um irresistível quê de drama intenso no espetáculo desses homens, até bem pouco governantes da maior parte da Europa e senhores de vida e morte de milhões. Lutaram pela própria existência, sentados no banco dos réus. As pessoas mais ponderadas viam no julgamento, entretanto, mais que a simples sensação do momento. Tinham escutado falar na escalada de crimes cometidos com tal sangue-frio que a mente civilizada só a muito custo concebia a sua efetivação, mesmo depois de cinco anos de guerra. Um tribunal internacional, comprometido com regras rígidas de evidência elaboradas por sistemas jurídicos nacionais durante séculos de experiência e requinte crescentes, certamente distinguiria a verdade indiscutível do boato infundado, e avaliaria com exatidão a culpa das pessoas, individualmente. Ao fazer isso, ele iniciaria uma nova era no desenvolvimento da justiça penal internacional e, assim, promoveria a causa que todos desejavam: o estabelecimento de um sistema de lei e ordem entre as nações. Na verdade, eram grandes esperanças; grandes demais para serem inteiramente cumpridas. Muito aconteceu desde então, e com rapidez cada vez maior. Inimigos tornaram-se aliados, e aliados, inimigos; outras guerras e atrocidades ocorreram. Os vinte e dois acusados de Nuremberg e seu destino são história passada, para a nova geração, e apenas um punhado dos seus nomes é lembrado. Embora acreditemos que o julgamento de Nuremberg tenha pelo menos lançado as bases para a aplicação internacional da justiça, temos que admitir que o progresso tem sido excessivamente lento e que os resultados práticos são ainda quase imperceptíveis. Quando as esperanças são insensatamente altas, é fatal que o desapontamento seja igualmente exagerado. Quando hoje se fala do julgamento de Nuremberg, normalmente é com ar de constrangimento, senão com declarado desdém. "Um julgamento de exibição, no modelo totalitário", dizem muitos; "um caso típico de ai dos vencidos!" À primeira vista, a afirmação parece plausível, porque contém um grão de verdade. O julgamento, evidentemente, teve um elemento político, na medida em que muitas das ações a serem julgadas eram, em sentido amplo, de caráter político. A criação do tribunal e o preparo da sua carta foram o resultado de negociações realizadas pelos Quatro Grandes entre as nações vitoriosas e, por certo, considerações políticas também desempenharam seu papel. Mas os trabalhos em Nuremberg não foram um julgamento de exibição e jamais pretenderam sê-lo. Ao contrário, veremos que, embora se fizessem tentativas esporádicas, dentro e fora da sala de julgamento, de transformar o tribunal num instrumento de política, os juízes afirmaram com coerência e firmeza sua independência e a supremacia da lei sobre qualquer conveniência política. Seja o que for que se possa pensar sobre seus aspectos controvertidos, o julgamento esteve sempre dentro dos melhores padrões de justiça. Os fatos principais revelados ou confirmados em seu decorrer formam agora parte do acervo comum do nosso conhecimento histórico e os arquivos de Nuremberg são uma fonte adequada para os estudos eruditos dos detalhes. Mas acreditamos realmente que valha a pena tornar a contar, hoje, a história do próprio julgamento. Em primeiro lugar, ele constitui uma experiência grande e imaginativa, do ponto de vista de legislação e procedimento penal, e suas lições são ainda muito apropriadas. Os problemas básicos com os quais o tribunal de Nuremberg teve de lidar também são problemas presentes e futuros, e a maneira como ele tentou resolve-los é instrutiva, em sentido positivo e negativo: em certos pontos, teve êxito; em outros, falhou. Queremos saber como teve êxito, e por que falhou. A história que se pode contar tem agora tanto interesse humano como na época despertaram os relatórios, embora hoje esse interesse seja de tipo diferente, por estarmos menos envolvidos emocionalmente, e por haver-se dissipado a atmosfera carregada de dramaticidade. Por outro lado, uma compreensão muito mais profunda das motivações e reações dos homens que ocuparam o palco em Nuremberg pode ser captada: não só dos acusados, como também dos acusadores, defensores e juízes. Ao contrário do leitor de jornais de vinte e cinco anos atrás, não precisamos tirar conclusões exclusivamente do que foi ouvido e visto nas sessões públicas do tribunal. Muitos dos que estiveram envolvidos, numa ou noutra posição - desde alguns dos acusados até o carrasco - publicaram suas memórias e comentários. Sabemos agora muita coisa sobre as atitudes e o estado de espírito dos prisioneiros quando não estavam no banco dos réus. Sabemos também das dissensões havidas entre promotoria, advogados de acusação e magistrados, em virtude de algumas deliberações dos juízes, tomadas sob a tensão de uma responsabilidade imensa. São esses vislumbres dos bastidores que dão à nossa história o fascínio inexistente nos registros oficiais do tribunal. Levar os principais nazistas ao tribunal não foi, como às vezes se afirma, uma decisão tomada precipitadamente no primeiro entusiasmo da vitória; ao contrário, esta se tornara uma das metas de guerra dos aliados, declarada já nos primeiros estágios do conflito. Além disso, a maneira como isso deveria ser feito fora assunto de estudos e debates prolongados. A cadeia de acontecimentos iniciou-se no outono de 1941, quando se tornou público que os alemães estavam executando sistematicamente os reféns inocentes na França, em represália aos ataques às forças alemães de ocupação. A 25 de outubro, o Presidente Roosevelt denunciou vigorosamente essa ilegalidade, e advertiu que os responsáveis pelo estabelecimento dessas medidas seriam um dia punidos. Winston Churchill, falando na Câmara dos Comuns, associou imediatamente seu governo à declaração do presidente. "A punição desses crimes -, disse ele, "deveria ser agora incluída entre as metas principais da guerra.- Pouco mais tarde, o governo da União Soviética lançou um protesto diplomático, sobre as atrocidades infligidas aos prisioneiros de guerra e civis russos, onde declarava que o governo de Hitler seria considerado responsável pelos crimes cometidos pelas tropas alemães. À medida que os relatórios sobre o terrorismo alemão continuaram chegando, essas declarações gerais de intenção foram seguidas de propostas algo mais concretas. Em Londres, os representantes dos oito governos exilados, Bélgica, Tchecoslováquia, Grécia, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, Polônia e Iugoslávia, e a Comissão Nacional Francesa, formaram a Conferência Interaliada (mais tarde: Comissão) de Punição por Crimes de Guerra, que faria a primeira tentativa de esclarecer os complexos problemas implicados e de criar um programa. Nas sessões desse organismo já eram evidentes algumas abordagens fundamentalmente diferentes. Assim, uns delegados insistiam em que o castigo dos criminosos de guerra deveria ser baseado na lei do país em que o crime fora cometido; outros, favoreciam a introdução de novos princípios de direito penal internacional. O General De Gaulle, falando pelos franceses livres, foi o primeiro a afirmar que não só os excessos praticados eram crimes passíveis de punição, mas também as guerras de agressão, pelos quais os líderes alemães deveriam ser responsabilizados. Contudo, na época, tal afirmação parece não ter causado muita impressão. Não se pôde chegar a nenhum acordo final sobre todos os pontos controvertidos, mas já a 13 de janeiro de 1942 a Conferência emitiu uma declaração, conhecida como a "Declaração de Saint James", que continha algumas diretrizes importantes. Os criminosos de guerra deveriam ser punidos, não por ação executiva, mas através de processo judicial. Tanto os agentes como os que deram as ordens seriam considerados culpados do crime. Era essencial uma solidariedade internacional no trato do problema, para impedir que a população vitimada buscasse vingança anárquica. Os governos do Reino Unido e dos EUA, ao declararem, a 7 de outubro de 1942, a disposição de criar a "Comissão das Nações Unidas para Crimes de Guerra", deram passo importante no estudo do problema. À "Comissão" cabia, precipuamente, identificar as responsáveis por crimes conhecidos, recolher e avaliar provas. A declaração dos dois governos desestimulava represálias em massa, mas garantia que os responsáveis por assassinatos organizados e outras atrocidades não ficariam impunes. Ela foi adotada por todas as nações aliadas, com uma exceção significativa: o governo soviético tentou obter uma posição preponderante, exigindo que as repúblicas-membros da União Soviética fossem separadamente representadas na Comissão. Quando a exigência foi recusada, os russos criaram a Comissão Extraordinária Estatal Soviética para Investigar Crimes de Guerra. Na vã esperança de que o governo soviético pudesse mudar de idéia, a CNUCG ficou no estágio do planejamento por algum tempo. Entrementes, grupos especiais de estudo trabalhavam arduamente nos aspectos legais das acusações. Pelo menos um deles, a Assembléia Internacional de Londres, fundada pelo Visconde Cecil of Chelmwood, teve considerável influência sobre as decisões ulteriores, especialmente por considerar que as guerras de agressão e o genocídio eram crimes especificados no direito internacional, e que deveriam ser submetidas a julgamento as pessoas que por eles fossem responsabilizadas. Em outubro de 1943, dois outros pontos importantes relacionados com o problema foram resolvidos. Um deles foi o estabelecimento oficial da CNUCG, que realizaria o trabalho preparatório indispensável para futuras denúncias. As oportunidades de adquirir provas documentais e para indicar os indivíduos suspeitos de crimes de guerra foram, evidentemente, limitadas enquanto a guerra durou. Não obstante, em março de 1945, a comissão havia compilado cinco dessas listas, com mais de 2.000 nomes, e os governos representados na ONUCG haviam proporcionado considerável conjunto de fatos detalhados. Também é evidente que apenas um punhado das pessoas relacionadas estavam em posição de serem classificadas como "grandes" criminosos de guerra; portanto, o trabalho de verificação de fatos da comissão teve menor influência sobre o julgamento principal de Nuremberg do que sobre muitos outros julgamentos que se seguiram. O outro acontecimento foi uma declaração, assinada por Roosevelt, Churchill e Stalin, após uma conferência de ministros do exterior, realizada de 19 a 30 de outubro em Moscou. Essa "Declaração de Moscou" é particularmente digna de nota, por ter sido a primeira declaração básica de política feita conjuntamente pelas três grandes potências. Segundo afirmava a "Declaração", os criminosos de guerra seriam divididos em dois grupos: "grandes" e "pequenos" criminosos. Quanto ao primeiro grupo, estabelecia que: "Os oficiais alemães e membros do Partido Nazista que consentem nas atrocidades, massacres ou execuções, ou que ordenem a sua realização, serão devolvidos aos países onde cometeram tais atos, para que possam ser julgados e punidos segundo as leis dos países libertados e dos governos livres neles estabelecidos." Observe-se a palavra "consentem". No que respeita ao segundo grupo, a declaração ficou deliberadamente vaga. Ela simplesmente dizia que aqueles cujos crimes não tinham nenhuma localização geográfica particular "seriam castigados por decisão conjunta dos governos dos Aliados", não fazendo qualquer tentativa para definir os crimes "sem localização geográfica particular". Tampouco os signatários se comprometeram sobre se as sentenças seriam pronunciadas por meio de um julgamento formal ou através de algum procedimento sumário. Até esse momento, o mundo livre não se mostrara propenso a culpar a nação alemã, como um todo, pelos horrores da guerra. A idéia de culpa coletiva, ainda amplamente aceita durante e depois da Primeira Guerra Mundial, era agora quase que universalmente considerada primitiva e injusta; os pronunciamentos oficiais a rejeitaram muitas vezes. Mas os quatro anos de luta desesperada pela sobrevivência, com seu cortejo de sofrimentos, medos e privações, ensejariam fatalmente o embrutecimento das mentes até mesmo daqueles que se haviam conservado fiéis às atitudes civilizadas do tempo de paz. Depois de enfrentarem os rigores da guerra total, na qual as distinções entre soldados e civis, alvos militares e não militares, se haviam tornado quase inexpressivas, não é de espantar que poucos pude sem distinguir cuidadosamente entre alemães culpados e inocentes ou os diferentes graus de culpa. Havia outro fator cujo impacto moral não deve ser subestimado. Com repugnância, um mundo relutante foi finalmente obrigado a aceitar como verdadeiros os relatórios do que os nazistas chamavam, com cinismo repulsivo, "a Solução Final da Questão Judia." Era algo para o qual termos como "perseguição" ou "pogrom" já não eram mais adequados. O extermínio planejado de todos os judeus na Europa central e oriental evidentemente exigia dezenas de milhares de carrascos e uma organização imensa. Só para as pessoas que não têm experiência pessoal de um regime totalitário é que é difícil crer que pudesse haver, na Alemanha, alguém que não soubesse disso. Não foi somente a magnitude do crime que fez da Solução Final um fenômeno especial. A perseguição implacável de adversários políticos, a selvageria na busca da vitória, o saque, o estupro e o assassinato por parte de uma soldadesca brutalizada - todas estas eram coisas que haviam acontecido antes e tem acontecido depois. É horrível que tivessem que ocorrer no século XX, e no coração da Europa, mas não estavam fora dos padrões reconhecidos do comportamento - por demais - humano. Mas o processo sistemático, prolongado e burocraticamente controlado de exterminar milhões de vítimas que não ofereciam nenhum perigo e cuja morte não dava nenhuma vantagem aos assassinos só podia ser interpretado como a manifestação de uma mente enferma; e toda a nação alemã parecia estar afetada pela doença. Esta nação, simplesmente, tinha de ser esmagada e reduzida à impotência, até curar-se do mal. O endurecimento temporário das atitudes dos Aliados teve como expressão o Plano Morgenthau. Num memorando datado de 6 de setembro de 1944, o Secretário do Tesouro norte-americano, Henry Morgenthau Jr., propôs que, depois da guerra, a Alemanha devia ser dividida em pequenas unidades políticas, ter suas instalações industriais desmanteladas e suas minas destruídas. Devia ser transformada num país puramente agrícola, pobre e impotente. Que tal plano irrealista e cruel pudesse ser sugerido por um homem que, segundo dizem todos os que o conheceram, era uma pessoa culta e de grande inteligência, e que ele pudesse ser levado a sério por políticos responsáveis, é uma indicação do ressentimento manifestado em muitas partes, na época. O Plano Morgenthau foi inicialmente aceito, de forma abrandada, por Roosevelt e Churchill na Conferência de Quebec, realizada no fim daquele mês. Esse fato transformou-se no prato favorito dos inimigos da Democracia que, baseados na aprovação de tal Piano, afirmavam que as democracias praticamente não eram menos bárbaras do que os nazistas mas, evidentemente, isso é absurdo, como veremos. É compreensável que, por algum tempo, as pessoas voltassem ao espírito do Tratado de Versalhes, de 1919, e à idéia de castigo coletivo; fato realmente importante - e muito recomendável - sobre o Plano Morgenthau é que ele permaneceu um episódio sem conseqüências. Foi imediata e vigorosamente combatido dentro do Gabinete dos Estados Unidos, especialmente pelo Secretário de Estado, Cordell Hull, e pelo Secretário da Guerra, Henry L. Stimson. A notícia da sua existência chegou à imprensa norte-americana e foi amplamente discutida nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Logo tornou-se notório que o peso da opinião pública era-lhe francamente contrário, diante do que o plano foi para sempre abandonado. Por último, devemos citar um memorando apresentado por três membros do Gabinete dos EUA ao Presidente Roosevelt, a 22 de janeiro de 1945, na véspera da sua conferência com Churchill e Stalin em Yalta. Esse memorando na realidade não foi discutido na conferência, mas esclarecia a posição norte-americana sobre dois pontos que até então só tinham sido considerados vagamente. O memorando recomendava, em primeiro lugar, que certas organizações nazistas, como a Gestapo e as SS, deviam ser acusadas, assim como os líderes nazistas; segundo, que tanto os líderes como as organizações deveriam ser responsabilizados não só por delitos específicos, mas também "por participação conjunta num amplo empreendimento criminoso que incluía e planejava esses atos, ou fora relativamente calculado para realizá-los". Isso queria dizer que o conceito legal anglo-saxônico de "conspiração" deveria ser aplicado no proposto julgamento dos principais criminosos de guerra. Como esta acusação de conspiração viria a deempenhar um papel muito importante, devemos acrescentar aqui algumas palavras de explicação. Uma regra geralmente aceita é que, se um homem planeja um crime, mas não o comete nem participa do seu cometimento, não será criminalmente responsável. Igualmente também quando ele tenha sido impedido de executar seu plano pelas circunstâncias, ou o tenha reconsiderado. Tampouco importa se outros adotam seu plano e o executam. Contudo, se várias pessoas combinam planejar um crime, então, na Grã-Bretanha e nos EUA, isto talvez baste para tornar cada uma delas culpada do crime especial de conspiração. Essa lei tem sido uma arma de sucesso, muito usada na luta contra o gangsterismo nos Estados Unidos. Sem ela, poucos dos "chefões" que não aparecem poderiam ter sido condenados. Naturalmente, de todos os gangsters, os chefes ocultos eram os mais perigosos, e moralmente os mais culpados. Portanto, essa era a posição quando do fim da guerra. Entre as Nações Unidas, havia unanimidade quanto à maneira como os responsáveis por atrocidades localizadas, os criminosos "menores", deveriam ser tratados. Mas no tocante aos "grandes" criminosos de guerra, só havia concordância sobre um ponto: eles teriam de pagar pelos seus crimes e deviam ser punidos de acordo com princípios internacionalmente aceitos. Somente desse modo é que se poderia manter dentro de limites controlados a exigência universal de uma punição justa. Durante a guerra, fora fácil fazer admoestações solenes e declarações gerais de intenção; mas agora, confrontados com problemas políticos e jurídicos de grande complexidade, os vencedores tinham de tomar decisões práticas. Os vários organismos consultivos, dos quais já falamos, haviam feito um trabalho minucioso e de valia, mas a verdade indiscutível que surgiria das suas discussões é que não existia uma solução ideal; cada um dos meios sugeridos apresentava vantagens e desvantagens. E como os princípios da jurisprudência internacional - um ramo muito pouco desenvolvido do direito - não prescrevia um procedimento obrigatório e claramente definido ao se aplicar nesta situação sem precedentes, as primeiras decisões, as decisões básicas, tinham de ser tomadas no nível político. Sendo assim, era inevitável que aos Quatro Grandes - as mesmas potências que compartilhavam do domínio soberano da Alemanha vencida - caberia o fardo da tomada de decisão. Deveria haver um julgamento formal dos principais criminosos de guerra? Esta era a primeira pergunta; sobre ela a opinião pública estava nitidamente dividida. Para alguns, o princípio da legalidade estrita era o único digno de nações democráticas. Outros achavam que os papéis desempenhados pelas principais personalidades do Terceiro Reich já eram do conhecimento geral; portanto, parecia desnecessário e até mesmo hipócrita passar pelo palavrório forense para estabelecer sua culpa. Seria mais fácil fuzilá-los assim que fossem presos, ou, no máximo, julgá-los sumariamente no local. Significativamente, onde os brados por uma justiça improvisada se faziam ouvir com mais insistência era na Alemanha. As atitudes oficiais também diferiam. Uma vez abandonado o Plano Morgenthau, o governo americano passou a favorecer firmemente um julgamento justo perante um tribunal internacional, como o único meio de assegurar os efeitos morais que todos desejavam. Por outro lado, os estadistas britânicos a princípio fizeram vigorosas objeções. Tanto Churchill como seu Ministro do Exterior, Anthony Eden, davam mais atenção à necessidade de rapidez. A bem da ordem na Europa, era conveniente que o organismo político alemão fosse liberado o mais breve possível dos seus elementos mais sórdidos; mas um julgamento onde as implicados tivessem todas as oportunidades de se preparar e apresentar seu caso seria um trabalho prolongado. Além disso, por mais meticuloso que fosse um julgamento assim conduzido, eles previam que, em última análise, não poderia fugir à desconfiança que o homem comum tem, compreensivelmente, quanto a qualquer ação judicial com tonalidades políticas. A execução, sem pronunciamento de um ribunal, de pequeno número dos nazistas de cúpula - foram indicados Hitler, Goring, Himmler, Goebbels, Ribbentrop e Streicher - seria o modo mais sensato de se lidar com o problema dos principais criminosos de guerra. Os russos não faziam objeções a um julgamento, mas logo tornou-se evidente que eles tinham idéias próprias sobre a forma que o trabalho dos juízes deveria tomar. Em maio de 1945, a questão principal foi debatida em reuniões especiais entre os ministros do exterior dos Quatro Grandes, durante a conferência de criação da Organização das Nações Unidas, em São Francisco. Pouco antes, Hitler se suicidara em seu abrigo em Berlim e, se conhecido, este fato teria oferecido um argumento de peso em favor da atitude britânica. Mas os negociadores não sabiam que Hitler estava morto. Mais precisamente, apenas os russos sabiam, mas nada contaram. Dessa forma, a opinião norte-americana prevaleceu e se decidiu realizar um julgamento formal perante um tribunal militar internacional. Na verdade, ele agora seria apenas um julgamento dos principais criminosos de guerra - sem o principal criminoso de guerra; uma falha para a qual não havia remédio. Contudo, aceitando todas as conseqüências, estabelecera-se que cada um dos quatro governos indicaria um representante e que esses se reuniriam o mais breve possível, em Londres, para elaborar os detalhes. A Conferência de Londres iniciou-se formalmente a 26 de junho. O representante nomeado pelo Presidente Truman (Roosevelt falecera a 12 de abril de 1945) era Robert H. Jackson, Juiz Adjunto do Supremo Tribunal, cuja energia dominou toda a conferência. Jackson era um idealista, com crença firme na justiça natural e na eficácia do processo judicial. Jamais transigiu em questões de princípio e tinha dificuldades em ceder até mesmo em questões relativamente corriqueiras. Seu zelo moral e seu espírito combativo lhe foram proveitosos em Londres, onde teve de superar considerável resistência sobre várias questões. Antes de partir para Londres, Jackson definira seus objetivos no relatório minucioso dirigido ao Presidente, onde encontramos o seguinte trecho: "Nosso processo contra os principais acusados refere-se ao plano diretor nazista, não às barbaridades e perversões individuais que ocorreram independentemente de qualquer plano central. A base do nosso processo deve ser realmente autêntica e constituir uma história bem documentada do que estamos convencidos ter sido um plano amplo e concertado para incitar e cometer as agressões e barbaridades que chocaram o mundo. Não nos devemos esquecer de que, quando os planos nazistas foram proclamados de maneira tão audaciosa, eram de tal modo extravagantes, que o mundo se recusou a levá-los a sério. A menos que escrevamos a história desse movimento com clareza e precisão, não poderemos culpar o futuro se, nos dias de paz, ele considerar incríveis as generalidades acusatórias pronunciadas durante a guerra Devemos confirmar acontecimentos incríveis por meio de provas críveis." O raciocínio em que se baseiam essas palavras é impecável, mas devemos compreender claramente o que elas subentendem. Primeiro, podia-se muito bem confiar em que os juizes avaliariam, com imparcialidade profissional, a evidência de "barbaridades individuais", tarefa para a qual estavam preparados pela sua educação e experiência; mas a redação da histeria de toda a conspiração, "do plano grande e concertado" - na verdade a revisão de grande parte da história européia: durante duas décadas - estaria muito além das funções normais de um tribunal. Segundo, já observamos que o conceito de conspiração criminosa é peculiar ao direito consuetudinário anglosaxônico; seria correto aplicá-lo num julgamento de alemães por crimes cometidos na Europa Continental? Além disso, há certa imprecisão inerente ao conceito. Se interpretado de maneira ampla, quase toda personalidade pública do Terceiro Reich poderia ser considerada participante. Seria difícil traçar uma linha sem ser arbitrário. Além disso, não é verdade que os estadistas soviéticos haviam ajudado e secundado o plano diretor nazista, assinando o pacto de não agressão e partilha da Polônia em 1939? Não se poderia dizer que os pacificadores franceses e britânicos, ou pelo menos alguns deles, "conspiraram" com os nazistas? Para Jackson, foi muito fácil conquistar o apoio do representante britânico. Naquele momento, era Sir David Maxwell-Fyfe, mais tarde Conde de Kilmuir. Quando o governo Churchill caiu, em fins de julho, Maxwell-Fyfe foi substituído por Sir William Jowitt. Fyfe era de espírito bastante convencional, embora um advogado militante muito hábil nos tribunais e político experiente, cujas preocupações principais eram a preservação da unidade aliada e que o início dos processos não deveria ser atrasado indevidamente. Ele não era inclinado ao dogmatismo jurídico nem às considerações, a longo prazo, de posição política que atrapalhassem esses objetivos. Contudo, assim que o Vice-Presidente do Supremo Tribunal da União Soviética, General I. T. Nikitchenko, e o Professor Trainin se juntaram aos debates em Londres, a finalidade básica dos trabalhos voltou a ser motivo de discussão. Na opinião russa, um julgamento justo significava que a evidência seria apresentada correta e totalmente, não para estabelecer a culpa dos acusados, pois esta já estava confirmada, mas para o julgamento da posteridade. Citamos abaixo um trecho das proposições de Nikitchenko, apresentadas a 29 de junho: "Não estamos tratando aqui de um caso de crime comum, de roubo, de furto ou crimes menores. Iremos julgar os principais criminosos de guerra, que já foram condenados e cuja condenação já foi anunciada, nas declarações de Moscou e da Criméia, pelos chefes dos governos... Com relação à posição do juiz, a delegação soviética acha irrelevante, considerando-se a natureza do caso, o princípio de que ele deva ser parte completamente desinteressada, sem nenhum conhecimento prévio do caso... As alegações da acusação são indubitavelmente do conhecimento do juiz antes do início do julgamento; portanto, não há por que criar uma espécie de ficção... Se o procedimento a ser adotado impõe que o julgador deva ser absolutamente imparcial, isto só levará a atrasos desnecessários... O que se pretende é assegurar um castigo justo e rápido pelo crime cometido." Nikitchenko dificilmente esperava que tal proposta fosse aceita pelos delegados dos países ocidentais, e, tendo expressado o ponto de vista soviético apenas para vê-lo registrado, não insistiu mais. Porém - embora afirmasse categoricamente que, se se queria fazer um julgamento, este teria de ser genuíno - Jackson concordava com o fato de que, quanto às condenações, senão às sentenças, o resultado teria que ser o que todos esperavam. "Na declaração do Sr. Nikitchenko há muito de verdade. Neste caso só pode haver uma decisão - a qual somos obrigados a admitir. Mas o que deve prevalecer é a evidência, não as declarações feitas por chefes de estado com relação a esses casos." Dever-se-ia incluir "crimes contra a paz" nas acusações? Esta questão incomodou muito mais. Os delegados franceses, Juiz Robert Falco e o Professor André Gros, achavam que não. Mesmo que as guerras de agressão fossem ilegais - os peritos em direito internacional não concordavam com isso - o erro foi cometido por um estado; ainda não havia nenhuma regra jurídica reconhecida que tornasse alguém pessoalmente responsável, por mais lamentável que esta posição legal pudesse ser. Na opinião dos franceses, as cláusulas indisputáveis do direito internacional bastariam, contudo, para se alcançar os objetivos essenciais do julgamento. "Creio", disse o Professor Gros, "que nossas diferenças são mais ou menos as seguintes: os americanos querem ganhar o julgamento alegando que a guerra nazista era ilegal; o povo francês e o dos vários países ocupados querem apenas mostrar que os nazistas eram bandidos. Esta demonstração não é difícil. Há muitos anos vem grassando o banditismo organizado na Europa, e, como resultado disso, muitos crimes foram cometidos. Queremos mostrar que esses crimes se deram segundo um plano comum". Os russos não estavam preocupados com tais considerações legais. Estavam tão ansiosos quanto os americanos por verem os líderes nazistas castigados pelo crime de iniciarem guerras de agressão. Mas estipularam uma condição: qualquer definição do crime deve ser explicitamente restrita aos atos agressivos cometidos pelos nazistas e seus aliados. Não é de surpreender que os russos considerassem vital este ponto, considerando a própria história de agressões desse povo, contra a Finlândia e a Polônia. Para Jackson, os crimes contra a paz haviam-se tornado a questão crucial do julgamento. Ele compreendia os escrúpulos legais dos franceses, mas o próprio fato de que o direito internacional não era claro a este respeito tornava, na sua opinião, ainda mais conveniente que um tribunal internacional pudesse decidir com firmeza segundo os conceitos modernos de justiça. Observou que os Estados Unidos haviam ajudado as nações atacadas, antes de entrarem na guerra, o que leva à convicção de que, para os EUA, as guerras de Hitler haviam sido ilegais desde o início. Quanto à definição restritiva exigida pelos russos, estas eram totalmente inadmissíveis: "Achamos que a restrição não procede, porque faz uma declaração muito unilateral de direito. Se certos atos que violam tratados são crimes, terão que ser entendidos como crimes, quer sejam cometidos pelos Estados Unidos, quer pela Alemanha. Não estamos na disposição de considerar criminosas certas regras de conduta, por parte de outros países, se estas mesmas regras são também seguidas por nós." Maxwell-Fyfe, embora ciente das dificuldades que deveriam surgir no julgamento, devido à falta de uma definição legal clara de "crimes contra a paz", ficou do lado de Jackson. Dificilmente poderia agir de outro modo, já que aceitara os princípios americanos antes do início formal das negociações de Londres. Entretanto, ainda insistia em que o julgamento não deveria demorar mais de três semanas - uma impossibilidade óbvia, se as questões a serem julgadas fossem tão amplamente examinadas e debatidas como Jackson queria. Também houve vários pontos menos importantes em debate. Um deles referia-se à proposta de se julgar certas organizações nazistas; naturalmente, o tribunal não pronunciaria qualquer sentença de castigo nesse caso, mas simplesmente as declararia organizações criminosas. Os russos, de acordo com sua teoria geral sobre o julgamento, fizeram objeções aos trabalhos contra as organizações, alegando que os governos aliados já as haviam declarado como tais. Durante muito tempo se mantiveram teimosamente as atitudes antagônicas, e na última semana de julho não parecia haver nenhum acordo em vista. Foi então que Jackson pronunciou o equivalente a um ultimato: disse não ter autoridade para abandonar a posição americana e mesmo que isto estivesse a seu critério, não estaria disposto a fazê-lo. Preferia abandonar, de todo, o plano de um julgamento internacional, caso em que os americanos julgariam todos os principais criminosos de guerra que viessem a cair em suas mãos. Estivesse ele falando sério ou blefando, a verdade é que a ameaça foi eficaz - sobretudo porque a maioria dos principais nazistas estava sob custódia americana ou britânica. Assim, no começo de agosto, todas as questões importantes existentes entre os delegados foram solucionadas segundo as propostas americanas. A 8 de agosto os delegados assinaram o "Acordo de Londres", que os outros governos das Nações Unidas foram convidados a apoiar (o que fizeram subseqüentemente). A jurisdição, constituição e as funções do Tribunal Militar Internacional a ser criado foram definidas na carta anexada ao acordo. Esta carta contém trinta artigos e somente os mais importantes serão resumidos aqui. O Artigo 2º estipulava que deveria haver quatro juízes, a serem indicados por cada um dos quatro partícipes do acoordo. Para cada um desses juízes titulares seria nomeado um juiz substituto, da mesma forma. Não se adotou uma sugestão anterior, de que os substitutos deveriam ser escolhidos entre outras nacionalidades; se aceita, poderia ter sido de grande utilidade, salientando o caráter internacional do tribunal, mas não há razão para se crer que viesse a alterar os rumos do julgamento. O Artigo 3º estabelecia a regra vital de que a competência, jurisdição e composição do tribunal não podiam ser contestadas pela acusação ou pela defesa. Segundo o Artigo 6º, as categorias de crimes a serem julgados seriam as seguintes: Crimes contra a paz: o preparo, iniciação e empreendimento de guerras de agressão, em violação de tratados ou garantias internacionais, e a participação num plano comum, ou conspiração, para essa finalidade. A Carta não definia com precisão o termo "guerra de agresssão". Crimes de guerra: violações de leis, isto é, convenções internacionais e costumes de guerra, incluindo maltratos e deportações de populações civis, assassinato ou tratamento desumano de prisioneiros de guerra ou pessoas no mar, e o assassinato de reféns, saque e destruição desenfreada. Crimes contra a humanidade: assassinato, extermínio, escravização, deportações e outros atos desumanos cometidos por motivos políticos, raciais ou religiosos. Ao contrário dos crimes de guerra, tais atos não precisariam ter sido cometidos em território inimigo ocupado ou contra naturais do país inimigo. Todavia, eles devem estar "dentro da jurisdição do Tribunal", o que mais tarde foi interpretado como significando que a perseguição de oponentes políticos e judeus, realizada pelos nazistas na Alemanha antes da guerra, estava excluída. O Artigo 8º tratava da defesa por alegação de "ordens superiores": um acusado não estava isento de responsabilidade por um crime, mesmo que pudesse provar ter agido por ordens de um superior, embora o fato pudesse ser considerado atenuante. O Artigo 9º adotava a proposta de que o tribunal devia ter poderes de declarar que certos grupos ou certas organizações tinham caráter criminoso. As regras estipuladas para a realização do julgamento obedeciam ao sistema anglo-saxão de procedimento penal. Embora isto colocasse os advogados de defesa em desvantagem, porquanto teriam de se adaptar a um procedimento para o qual não dispunham de qualquer experiência, compreendeu-se claramente que, comparativamente, este procedimento era uma salvaguarda para uma realização justa do julgamento. As regras da evidência tinham de ser menos formais do que nos casos comuns, mas os direitos básicos dos acusados eram explicitamente garantidos pelo Artigo 16 da Carta. Nos termos dos Artigos 26 e 27, o tribunal era obrigado a dar suas razões para condenar um acusado, mas não para o grau do castigo, ou seja, a pena. Ele recebeu o direito de pronunciar sentenças de morte. Acumulando provas Finalmente, chegou-se a uma base estatutária para o julgamento dos principais criminosos de guerra. Tal base professava ser apenas uma aplicação concreta das regras existentes do direito internacional, mas por certo esta afirmação não era indisputável. Também é verdade que algumas das cláusulas eram menos precisas do que se poderia desejar. Tentamos mostrar que em grande parte este problema era inevitável e que os que haviam redigido a Carta estavam perfeitamente cônscios dos seus pontos controvertidos. Restava saber se as fraquezas reconhecidas da Carta se revelariam apenas defeitos de natureza mais ou menos técnica, ou se se tornariam obstáculos incontornáveis no caminho da justiça. Teria o tribunal a integridade e a capacidade de manter os elementos políticos do julgamento dentro dos seus limites e de esclarecer os pontos jurídicos duvidosos? Somente o decorrer do julgamento poderia responder. E seria possível reduzir o conhecimento geral dos crimes cometidos a provas concretas, mostrando o envolvimento do acusado "sem sombra de dúvida"? Mesmo antes de iniciados os trabalhos, estava claro que, sob este aspecto, a acusação seria realmente capaz de apresentar alegações muito convincentes. A busca de provas documentais trouxe resultados muito além das expectativas mais otimistas. Seria de esperar que, pelo menos no tocante às atrocidades mais grosseiras, poucos seriam os registros mantidos. Mas não; os agentes do crime orgulhavam-se da eficiência com que realizavam o crime, e o registravam pormenorizadamente e de modo quase pedante. Na confusão do colapso do Terceiro Reich, nenhuma ordem foi dada no sentido da destruição dos arquivos. Grande número de pessoas envolvidas havia perecido nos acidentes de guerra, mas milhares de documentos foram recuperados nos escritórios locais do partido ou do governo, ou em esconderijos para onde haviam sido removidos apressadamente. Assim, os arquivos de Alfred Rosenberg, o "filósofo" nazista e ex-Ministro do Reich para os Territórios Orientais Ocupados, foram encontrados ocultos em uma parede falsa num castelo abandonado. Em outro castelo abandonado, uma equipe de buscas encontrou os arquivos quase completos do Ministério do Exterior Alemão, perto de cinco toneladas de papéis. O ex-Governador-Geral nazista da Polônia, que angariara o apelido de Polsenschlächter (Carniceiro dos Poloneses), entregou seu substancioso diário, intato, quando da sua prisão. Uma descoberta particularmente valiosa foi a dos arquivos pessoais do Chefe das SS, Heinrich Himmler; muitos outros foram encontrados. Toda esta evidência escrita foi reunida em centros de documentação especialmente criados, onde os itens foram separados, selecionados, registrados, traduzidos e reproduzidos antes de serem submetidos às equipes de acusação para avaliação e seleção finais. Portanto, a acusação estava em posição de construir seu libelo basicamente sobre provas oferecidas pelos arquivos alemães, mas as equipes de investigação também conseguiram reunir grande número de testemunhas importantes. Era natural que os sobreviventes do terror nazista e os adversários secretos do regime de Hitler estivessem dispostos a prestar testemunho. Mas o surpreendente foi que muitos dos nazistas do alto escalão, eles próprios enfrentando a possibilidade de serem levados a julgamento, nos processos projetados contra criminosos de guerra "menores", estivessem dispostos a contar tudo nos interrogatórios preliminares. Trinta e três testemunhas importantes foram chamadas a depor pela acusação, no julgamento dos principais criminosos de guerra. A coleta das provas foi um impressionante feito de organização, e a força motriz desse grande esforço foi o Juiz Jackson, com seu zelo inquebrantável. Jackson também encontrou o local certo para o Julgamento, o que não fora muito fácil, dadas as condições caóticas predominantes na Alemanha, na época. Era o Palácio da Justiça em Nuremberg, um edifício imenso que oferecia espaço suficiente para acomodar não so o próprio tribunal, mas também os incontáveis escritórios necessários ao julgamento. Os russos teriam preferido Berlim, conjuntamente ocupada pelos Quatro Grandes, a um lugar na zona americana de ocupação, mas não restava um só prédio adequando, nos montes de escombros da antiga capital alemã. Talvez a decisão de Jackson e seus colegas também fosse influenciada por certas razões sentimentais. Nuremberg é uma cidade histórica; suas antigas belezas haviam sido carinhosamente conservadas por muitos séculos. Na Idade Média, fora um dos grandes centros europeus de comércio e cultura artesanal; fora o berço do maior artista da Alemanha, Albrecht Dürer, e de muitos outros artistas e artesãos famosos. Os amantes da música a conhecem como o cenário da ópera "Os Mestres Cantores", de Wagner. E os nazistas haviam pervertido a grande tradição da cidade, como haviam feito com tantas tradições alemães. Nuremberg tornara-se a "Cidade do Movimento", onde o Partido realizava suas reuniões anuais. Dali, Hitler promulgara suas infames leis raciais as Leis de Nuremberg - em 1935. Ali, o espírito que levou à guerra total e ao genocídio ficou demonstrado da maneira mais flagrante. Ali também a destruição chegou. A cidade fora grandemente danificada pelos bombardeios aliados maciços. Pode-se , dizer que Nuremberg simbolizava ao mesmo tempo o melhor e o pior do caráter nacional alemão, e também isto fazia dela uma escolha adequada. O Palácio da Justiça também sofrera seriamente com os bombardeios e teve de ser reparado e redecorado às pressas. Preparou-se um amplo tribunal demolindo-se uma parede que dividia dois tribunais contíguos de tamanho normal. O banco do juiz estava na extremidade oeste. O banco dos réus ficava ao longo da parede oposta, atrás das mesas dos advogados de defesa. Instalou-se um elevador para ligar os bancos dos réus à prisão. Na parte norte da sala havia quatro grandes mesas para as equipes da acusação, diante de uma galeria especialmente montada para a imprensa, e, acima desta, uma galeria para visitantes. Tratava-se de um julgamento para o qual se desejava a maior publicidade possível. O problema de interpretação foi solucionado, depois de muita discussão, com a adoção do sistema de tradução simultânea, por sugestão do Juiz Jackson. O sistema, na época bastante novo e não experimentado, é agora usado com freqüência e não precisa ser descrito em detalhes. Ele requer habilidade e concentração excepcionais por parte do intérprete e, no todo, é mais adequado para a interpretação de discursos previamente preparados do que para uma rápida sucessão de perguntas e respostas. Nos primeiros momentos do julgamento houve muitas queixas, mas logo que as pessoas se acostumaram a manipular seus audiofones, e que os intérpretes adquiriram experiência, o sistema passou a funcionar relativamente bem. De qualquer modo, era preferível ao método tradicional, que teria sido intoleravelmente lento num trabalho onde todas as provas e todos os argumentos tinham de ser traduzidos em três das quatro línguas oficiais: alemão, inglês, francês e russo. A denúncia, preparada de acordo com o Artigo 6º da Carta do Tribunal, era dividida em quatro pontos de acusação; os dois primeiros cobriam os "crimes contra a paz": 1º - conspiração para cometer guerra de agressão; 2º - o próprio crime da guerra de agressão; 3º - crimes de guerra; e 4º - "crimes contra a humanidade". Já explicamos a distinção entre essas duas categorias. O crime de conspiração para cometer crimes de guerra, e crimes contra a humanidade também foram incluídos na 1ª Cláusula, mas, no seu julgamento, o tribunal declarou que essa acusação não era sancionada pela Carta. Em conseqüência, grande parte das provas apresentadas pela acusação revelou-se legalmente impertinente. Dos pontos específicos a serem incluídos nas acusações, apenas um provocou forte discordância entre as equipes da acusação. No último instante, os russos insistiram em incluir o fato de os nazistas haverem assassinado milhares de oficiais poloneses, prisioneiros de guerra, cujos corpos foram encontrados na Floresta de Katyn. Os norte-americanos objetaram vigorosamente, pois estavam impressionados pela afirmação polonesa de que esse massacre específico na verdade fora perpetrado por forças soviéticas. Desta feita os russos conseguiram seu intento e, no devido tempo, apresentaram a questão ao tribunal, causando muito constrangimento, sobretudo para eles próprios. O tribunal apreciou a acusação em silêncio e a prova apresentada no julgamento por certo não era conclusiva em qualquer sentido. A verdade histórica do massacre de Katyn nunca foi plenamente apurada. A denúncia, um documento de 66 paginas impressas, foi finalmente assinada em Berlim, a 6 de outubro de 1945, e indicava os seguintes acusados: 1. Hermann Göring, até abril de 1945 o sucessor eventual de Hitler. Comandante-Chefe da Luftwaffe e Plenipotenciário para o Plano Quadrienal, o organismo controlador da economia de guerra alemã. Durante a luta do movimento nazista para a tomada do poder, ele comandou as SA e, tomado o poder, foi encarregado da Gestapo e do sistema de campos de concentração até que Heinrich Himmler assumiu essa função, em 1934. Depois de Hitler, ele em geral era considerado o mais importante líder nazista, embora, na verdade, sua influência declinasse gradativamente a partir de 1941. 2. Rudolf Hess, ex-Ministro sem Pasta do Reich, Representante do Führer e seu sucessor eventual, depois de Göring. Compartilhara da prisão de Hitler na fortaleza de Landsberg, em 1924, e o ajudara na redação do livro Mein Kampf continuou sendo o mais íntimo confidente de Hitler até 10 de maio de 1941, quando partiu no seu famoso vôo solitário ate a Escócia, aparentemente numa missão de paz que se impusera - ação cuja origem e motivo precisos ainda estão envoltos em mistério. 3. Joachim von Ribbentrop, que, entre 1933 e 1945, fora sucessivamente Conselheiro de Hitler para a Política Externa, Plenipotenciário, Embaixador no Reino Unido e, a partir de fevereiro de 1938, Ministro das Relações Exteriores do Reich. 4. Robert Ley, ex-Líder da Frente Trabalhista Alemã, Diretor da Organização do Partido Nazista e Co-Organizador da Inspeção Central para o Cuidado dos Trabalhadores Estrangeiros. 5. Feldmarechal Wilhelm Keitel, que fora nomeado Chefe do Estado-Maior do Alto Comando das Forças Armadas (OKW) quando Hitler assumiu o comando supremo da Wehrmacht, em fevereiro de 1938. 6. Ernst Kaltenbrunner, o sucessor de Reinhard Heydrich (assassinado por patriotas tchecos em junho de 1942) como Chefe das organizações de segurança internas e externas de Himmler, isto é, o Departamento Nacional de Segurança (RSHA), a Polícia de Segurança (Sipo) e o Serviço de Segurança (SD), dentro das SS. Estes eram os principais organismos ligados à execução dos "crimes contra a humanidade". 7. Alfred Rosenberg, o principal expoente da "filosofia" nazista e que também exercera importantes funções políticas e administrativas como Diretor do Departamento de Assuntos Exteriores do NSDAP e, de julho de 1941 até o fim da guerra, como Ministro do Reich para os Territórios Orientais Ocupados. O Einsatzstab Rosenberg fora uma força-tarefa especial para o saque de tesouros artísticos e certos tipos de propriedade nos Territórios Ocupados, tanto do Leste como do Oeste. 8. Hans Frank, ocupou altos cargos nos departamentos governamentais e do partido como assessor jurídico de Hitler; nomeado Governador-Geral dos territórios poloneses anexados em outubro de 1939. 9. Wilhelm Frick, Ministro do Interior do Reich de começos de 1933 a agosto de 1943, posteriormente Protetor da Boêmia - Morávia. Como principal perito nazista em administração, foi também Plenipotenciário-Geral da Administração do Reich, em cujo cargo tratara, em particular, dos detalhes técnicos da incorporação ao Reich dos territórios conquistados. 10. Julius Streicher, conhecido como "Perseguidor Número Um dos Judeus". Nunca ocupou cargo no governo e fora demitido da Liderança Partidária, como Gauleiter da Francônia em 1940, por má conduta, mas até certo ponto conservou a estima pessoal de Hitler. Continuou como editor do notório jornal Der Stürmer, que publicava propaganda anti-semita do tipo mais grosseiro, e com grande dose de pornografia vulgar. 11. Wilhelm Funk: substituiu a Hjalmar Schacht como Ministro da Economia e Plenipotenciário para a Economia de Guerra, no começo de 1938 e, um ano depois, como Presidente do Reichsbank. 12. Hjalmar Schacht, um dos mais eminentes peritos em finanças da Alemanha, que fora Presidente (com uma interrupção de 1930 até 1933), do Banco Nacional (Reichsbank) de 1923 a 1938. Depois da sua demissão dos cargos de Ministro da Economia e de Plenipotenciário para a Economia de Guerra, tornou-se Ministro sem Pasta, mas não participou da vida pública depois de janeiro de 1939. 13. Gustav Krupp von Bohlen und Halbach, diretor da famosa firma dos Krupp, que produziu o grosso das armas de guerra alemãs para três grandes guerras. Também foi Presidente da União da Indústria Alemã do Reich. 14. Grande-Almirante Karl Dönitz, comandante da arma de submarinos desde 1936 e Comandante-Chefe da Marinha a partir de 1934. No seu "testamento político", escrito antes de suicidar-se, Hitler nomeou Dönitz seu sucessor como Chefe do Estado. 15. Grande-Almirante Erich Raeder, Comandante-Chefe da Marinha durante os últimos cinco anos da "República de Weimar" e conservou esse comando no governo de Hitler até janeiro de 1943. 16. Baldur von Schirach, ex-Líder da Juventude do Reich, incluindo a Hitlerjugend, e, como tal, membro do governo do Reich de 1936 a 1940, quando foi nomeado Gauleiter de Viena; contudo, permaneceu no controle geral da educação juvenil. 17. Fritz Sauckel, Gauleiter da Turíngia desde 1927 e chefe do governo turíngio de 1933 a 1942. Em março de 1942, Hitler o nomeou Plenipotenciário Geral para a Utilização do Potencial Humano. A utilização de trabalhadores recrutados à força no exterior e de prisioneiros de guerra esteve dentro de suas funções. 18. General Alfred Jodl, ex-Chefe de Operações do Estado-Maior no Alto Comando das Forças Armadas (Wehrmacht) que gozava do direito de acesso direto a Hitler em todas as questões de operação. 19. Martin Bormann, Diretor da Chancelaria do Partido, Secretário do Führer durante os últimos anos do Terceiro Reich e a "Eminência Parda" de Hitler. Não havia sido preso, mas acreditava-se que ainda estivesse vivo, e o tribunal decidiu julgá-lo in absentia. 20. Franz von Papen, político profissional e Chanceler do Reich por seis meses durante o último ano da "República de Weimar". Foi Vice-Chanceler no primeiro Gabinete de Hitler, até 30 de junho de 1934, data do chamado "expurgo de Röhm". Posteriormente, foi Embaixador na Austria, de 26 de julho de 1933 a 4 de fevereiro de 1938, e Embaixador na Turquia, de abril de 1939 a agosto de 1944. 21. Arthur Seyss-Inquart, Ministro da Segurança e do Interior da Áustria durante o último mês da independência austríaca, e Governador do Reich na Áustria, depois do Anschluss (anexação) até o outono de 1939, quando se tornou Vice-Governador-Geral da parte anexada da Polônia, sob Frank. Em maio de 1940, foi nomeado Comissário do Reich para os Países Baixos ocupados. 22. Albert Speer, arquiteto de Hitler e, desde fevereiro de 1942, Ministro dos Armamentos e Munições do Reich (mais tarde recebeu o novo título de Ministro de Armamentos e Produção de Guerra do Reich). 23. Constantin von Neurath, diplomata de carreira que serviu como Ministro das Relações Exteriores nos gabinetes de von Papen e de Hitler até ser substituído por Ribbentrop. Em março de 1939, foi nomeado Protetor do Reich na Boêmia-Morávia, mas retirou-se da vida pública em setembro de 1941. 24. Hans Fritzsche, principal comentarista político de rádio do regime nazista, chefe da Divisão da Imprensa Interna do Ministério da Propaganda de Goebbels de dezembro de 1938 a novembro de 1942, posteriormente chefe da Divisão Radiofônica do mesmo ministério. Além desses indivíduos, sete "grupos ou organizações" foram incluídos como réus nas condições já explicadas: o Gabinete do Reich; o Corpo de Liderança do Partido Nazista; as SS; o SD; a Gestapo; as SA; o Estado-Maior-Geral e o Alto-Comando das Forças Armadas. Diante desta lista, ficamos impressionados com a estranha mistura que esses homens formavam. Fica-se cogitando sobre o critério usado para escolhê-los. Não havia centenas de outros que, com igual ou melhor justificativa, poderiam ser classificados como principais criminosos de guerra? Alguns dos acusados, Göring e Kaltenbrunner, por exemplo, eram escolhas realmente óbvias, mas dificilmente se pode dizer o mesmo de homens como Schacht, Funk, von Schirach ou Fritzsche. A escolha foi, então, tão arbitrária como poderia parecer à primeira vista? A pergunta é fundamental, se quisermos avaliar a importância do julgamento, e devemos tentar uma explicação. Em primeiro lugar, devemos lembrarnos de que, no contexto dos julgamentos de crimes de guerra, a palavra "principais" refere-se à posição central que um réu ocupava dentro do regime nazista, que era essencialmente criminoso; ela se refere ao grau mais elevado da sua responsabilidade, e não ao grau de depravação das suas ações. A acusação estava no convencimento pleno de que os assassinos e torturadores das massas, que seriam julgados posteriormente em outros tribunais, eram, na acepção comum do termo, piores criminosos do que Speer e Dönitz, por exemplo. Outra consideração estava ligada a esta. Jackson e seus colegas pretendiam salientar sobretudo o plano coletivo, em oposição a crimes individuais; assim, estavam compreensivelmente ansiosos por fazer com que cada aspecto importante do regime nazista fosse representado pelo menos por uma das personagens levadas ao banco dos réus, especialmente porque Hitler já não estava presente para responder pela totalidade dos crimes cometidos sob seu domínio. E dois dos seus três principais lugares-tenentes também se haviam suicidado: Himmler, o Reichsführer-SS, e Goebbels, Ministro da Propaganda nazista e controlador da vida cultural da nação. Como representante do terror das SS, Kaltenbrunner, por certo, não passava de uma segunda escolha, à falta de "melhor", mas em seu caso pelo menos se pode dizer que, segundo quaisquer padrões, ele era um grande criminoso de guerra e provavelmente teria sido denunciado, mesmo que Himmler ainda estivesse vivo para ser trazido ao tribunal. Mas julgar Fritzsche como substituto de Goebbels era um pouco absurdo, como o Tribunal mais tarde reconheceu tacitamente ao absolvê-lo. A inclusão de Fritzsche se deveu em parte à insistência dos russos, já que ele era um dos poucos nazistas notórios capturados pelas forças soviéticas. Até que ponto a promotoria foi na aplicação deste princípio da representação ficou claramente demonstrado no caso de Krupp. Quando, no começo do julgamento, se verificou que o velho Gustav Krupp estava doente demais para comparecer e o Tribunal recusou-se a julgá-lo na sua ausência, a acusação solicitou aos juizes, espantados, permissão para denunciar seu filho, Alfred, em seu lugar. E não apenas isto: também queria que o tribunal abrisse mão, neste caso, da sua regra, de que cada acusado devia receber uma cópia da acusação no mínimo trinta dias antes do julgamento. O tribunal respondeu com uma enérgica e sumária rejeição, sem se preocupar em dar as razões. Os promotores britânicos não haviam assinado a moção. Alfred Krupp foi indiciado e condenado, num julgamento subseqüente. Embora talvez não seja muito importante em si, este incidente marcou um momento decisivo na história dos trabalhos em Nuremberg. Desde a "Conferência de Londres", onde os homens da lei haviam substituído os políticos, predominou o "espírito de cruzado" de Robert H. Jackson. A redação da Carta e da acusação, o preparo das provas e a escolha dos acusados tinham sido essencialmente obra sua e refletiam suas idéias. Havia muitos que supunham que, como chefe da equipe americana de acusação, ele seria capaz de permanecer como encarregado e que o próprio julgamento seria o "julgamento de Jackson." Não há dúvida de que ele próprio pensava assim, e isso poderia realmente ter acontecido se a acusação tivesse tido permissão de advogar sua causa perante juízes passivos e complacentes. Mas este não era o caso. O juiz presidente, Lorde-Juiz Lawrence, era bastante conhecido, entre os juristas ingleses, como um "Magistrado forte", um homem de autoridade calma, porém muito firme; qualidade esta que já demonstrara em sua juventude, quando serviu, com distinção, como oficial na Primeira Guerra Mundial. Dele, nem mesmo o promotor mais convincente poderia arrancar o controle dos trabalhos. E, neste aspecto, podia contar com o apoio dos outros juizes, colegas seus, sem excluir - deve-se salientar - o dos juízes russos. Conscientes da importância histórica do julgamento, estavam decididos a não permitir ênfase indevida em detrimento do procedimento correto no tribunal, como os advogados de ambos os lados por certo tentariam fazer. A rejeição ríspida da moção da promotoria, quanto aos Krupps, foi a primeira indicação clara da sua atitude. Em começos de outubro, já todos os acusados haviam sido levados para a prisão reconstruída do Palácio da Justiça de Nuremberg, onde cada um recebeu sua cela separada e mobiliada de modo muito simples. Um pátio da prisão dava-lhes oportunidade para fazer um mínimo de exercício. Somente depois do início do julgamento é que os prisioneiros puderam conversar: quando estavam reunidos no banco dos réus, ou mais livremente, durante as refeições que faziam juntos, entre as sessões. No Palace Hotel em Mondorf, Luxemburgo, onde a maioria ficara detida anteriormente, haviam desfrutado de muito mais liberdade e conforto. O comandante da prisão de Nuremberg, o coronel americano C. B. Andrus, fazia questão de ordem e disciplina. Ele providenciou para que os prisioneiros recebessem alimentação decente, que tivessem pronta atenção médica quando necessário e que suas roupas fossem meticulosamente tratadas, mas os considerava apenas prisioneiros comuns e recusou-se a fazer quaisquer concessões ao seu senso de importância. Os prisioneiros o detestavam. A 24 de outubro, Robert Ley foi encontrado morto em sua cela, enforcado no cano de descarga do vaso sanitário e, depois disso, as medidas de precaução foram intensificadas. Os guardas do bloco de celas foram quadruplicados e receberam ordens de manter os prisioneiros sob constante observação. Estes tinham de dormir em posição que permitisse que a luz da portinhola lhes iluminasse o rosto; se mudassem de posição durante o sono, os guardas tinham ordens de despertá-los. Havia razões para estas medidas, mas se o Coronel Andrus temia que o suicídio de Ley provocasse qualquer perturbação mental nos outros acusados - levando talvez a outros suicídios - estava enganado. A consternação foi apenas temporária. Aliás, Göring achava bom que o desmiolado Ley tivesse morrido. Ele temia que o ex-Líder da Frente Trabalhista Alemã representasse um papel desagradável no tribunal. "De qualquer modo, ele vinha morrendo de tanto beber." A acusação, em sua forma definitiva, foi submetida ao tribunal a 18 de outubro e cópias desta foram distribuídas aos acusados, a quem foi consignado o prazo de um mês para estudá-la e preparar sua defesa. Cada acusado recebeu explicações completas dos seus direitos, nos termos da Carta; em particular, do seu direito de constituir um advogado alemão de sua escolha. O problema dos advogados de defesa causou algumas dores de cabeça aos juízes. Os dois juízes russos eram de opinião que ex-membros do partido nazista não deveriam ser aceitos como defensores e, neste aspecto, estavam de acordo com grande setor da opinião pública, dentro e fora da Alemanha. Todavia, eles foram vencidos pela maioria dos juízes, que achavam que tal restrição na escolha dos defensores não podia ser justificada e, em última análise, fatalmente criaria má impressão. Posteriormente, alguns dos advogados de defesa sugeriram que deviam ter permissão de serem auxiliados por colegas americanos ou britânicos, que poderiam ajudá-los nas dificuldades com o procedimento correto de tribunal adequado para o direito consuetudinário anglo-saxão. Esta parece ter sido uma das raras ocasiões em que uma decisão, quanto a procedimento, foi influenciada por considerações políticas. Os advogados de defesa estavam numa posição muito delicada. Somente poucos deles haviam sido membros do partido (o que não significa, necessariamente, que haviam sido nazistas convictos) e provavelmente eles mesmos ficaram surpresos e profundamente chocados com o vulto e com os detalhes horripilantes dos crimes citados na acusação. É certo que qualquer advogado, quando uma verdadeira vocação, faz o máximo pelo cliente, mesmo que deteste a pessoa e tudo o que ela representa; mas não é fácil adquirir e manter a confiança do cliente em tal situação. Ademais, não se tratava de um julgamento comum. A despeito da freqüência e solenidade com que os juízes e a acusação declaravam que não era a nação alemã que estava em julgamento, o público não acreditava muito nisso. Os advogados de defesa, conforme foram informados com muita clareza pelos jornalistas que os assediavam para entrevistas, sabiam que, de modo geral, esperava-se que eles representassem não só seus clientes como também "o ponto de vista alemão". Isto era um equívoco, mas que não podia deixar de ter poderoso efeito psicológico. As circunstancias exigiam deles bom equilíbrio entre a advocacia firme e o tato político. Se errassem num dos sentidos, os acusados e seus amigos poderiam recriminá-los por covardia moral; se no outro, haveria altos brados do público e da imprensa contra sua "desfaçatez". Quando pediram a Göring que escolhesse seu advogado, sua primeira resposta foi sintomática: "Simplesmente não posso imaginar que um advogado alemão tenha a coragem de falar perante um tribunal aliado". Contudo, em conclusão, a maioria deles realmente falou, com o estímulo do tribunal, ainda que após um período inicial de sondagem cautelosa. Um dos seus opositores em Nuremberg, Lorde Kilmuir, diz o seguinte a respeito deles em suas memórias: "Dois deles, que pareciam ser respectivamente o mais velho e o mais jovem, Dr. Rudolf Dix, que defendeu Schacht, e o Flottenrichter Otto Kranzbuhler, que defendeu Dönitz, eram os melhores que se poderia encontrar em qualquer tribunal, enquanto que os outros estavam à altura da elevada tradição da profissão, em circunstâncias que lhes devem ter sido extremamente difíceis." Ley matou-se; Frank fez duas tentativas infrutíferas de matar-se; Göring foi durante muito tempo viciado em drogas e provavelmente é verdade quando se diz que a estabilidade mental da maioria dos acusados estava, até certo ponto, prejudicada pela queda do poder, pelo isolamento e humilhações da prisão e pelas perspectivas sombrias à sua frente. Mas somente quanto a dois homens é que surgiu o problema de sanidade mental, no sentido legal e, portanto, quanto à possibilidade de serem submetidos a julgamento. Ambos foram examinados por uma comissão de psiquiatras. A inteligência de Streicher, conforme os testes confirmaram, estava muito aquém da média. Parecia presa de uma imaginação sexual doentia e seu ódio aos judeus era claramente obsessivo. Contudo, a comissão concluiu que, embora fosse altamente neurótico, não era insano e, em resumo, não há razões para se discutir essa avaliação. O caso de Hess é bem mais duvidoso. Ele afirmava estar sofrendo de perda de memória, do tipo conhecido como "amnésia progressiva", isto é, que em qualquer momento determinado ele só se podia lembrar do que acontecera até duas semanas atrás. Nessa conformidade, seu advogado requereu que se adiassem os trabalhos contra seu cliente. Os juízes enfrentaram uma questão difícil. A amnésia de Hess era verdadeira ou fingida? Eles não podiam confiar na comissão psiquiátrica, pois o laudo dos especialistas que a compunham era discordante sobre certos aspectos do caso. Mas no final da audiência que apreciou a moção, Hess fez a seguinte declaração: "Para evitar a possibilidade de ser declarado incapaz de defender-me - a despeito da minha boa vontade em participar dos trabalhos e ouvir o veredicto juntamente com meus camaradas - gostaria de fazer a seguinte declaração perante o tribunal: "Daqui em diante, minha memória tornará a reagir ao mundo exterior; minhas razões para simular a perda de memória eram de natureza tática. Somente minha capacidade de concentrar-me está, de fato, algo reduzida. Mas minha capacidade de acompanhar o julgamento, de defender-me, de interrogar testemunhas ou de responder eu mesmo a perguntas, não está por ela afetada. "... também fingi perda de memória depois de estar em contato com meu advogado de defesa, oficialmente nomeado. Portanto, ele me representou de boa fé." Esta declaração, que evidentemente fora escrita para ele, não parece de todo convincente, mas, na época, os juízes não tinham outra alternativa senão usá-la e rejeitar a moção. Pouco depois da audiência, Hess tornou a afirmar que só podia lembrar-se do passado muito recente e ateve-se a esta atitude durante todo o julgamento, exceto numa ocasião em que tornou a afirmar dramaticamente que estava fingindo. O Dr. G. M. Gilbert, psicólogo da prisão, que mantinha contato diário com todos os acusados, chegou à conclusão de que Hess realmente sofria de amnésia histérica, cujo grau, contudo, variava consideravelmente de quando em vez. Mas, seja qual for o diagnóstico certo do estado mental de Hess, toda a sua atitude e reação estavam tão longe do normal que não nos convenceram muito quanto à sua habilidade de defender-se. Depois da entrega da acusação, o Dr. Gilbert também obteve e registrou as primeiras reações de cada prisioneiro. Vale a pena mencioná-las porquanto prenunciam as futuras dissensões entre os acusados e o fracasso em desenvolver uma estratégia conjunta de defesa. Alguns nada disseram sobre a verdade ou falsidade das acusações, mas apenas atacaram a acusação em termos violentos. Göring sentou ignorá-la com um lugar-comum cínico: "O vencedor será sempre o juiz e o derrotado, o acusado". Naturalmente, para Streicher o julgamento foi apenas um "triunfo do Sionismo Mundial." Frick afirmou que -"toda a acusação se baseava na suposição de uma conspiração fictícia". No outro extremo da escala, Speer reconheceu francamente a justiça geral da acusação e não tentou justificar-se: "O julgamento é necessário. Há uma responsabilidade comum por crimes tão horríveis, mesmo num sistema autoritário". Frank reconheceu essencialmente a mesma coisa, embora numa forma menos racional e de acordo com uma fé religiosa recém-encontrada: "Considero o julgamento como um tribunal determinado por Deus, destinado a examinar e a pôr fim à terrível era de sofrimentos sob o domínio de Adolf Hitler". Jodl disse muito cautelosamente que lamentava a "mistura de acusações justificadas e propaganda política". A maioria dos acusados estava disposta a condenar, explicitamente ou por implicação, os crimes cometidos por outros, mas negavam individualmente a própria culpa, dizendo que não haviam estado envolvidos de modo algum (Schacht: "Não compreendo por que fui acusado"; Dönitz: "Nenhum desses pontos da acusação me diz respeito"), ou que haviam simplesmente obedecido o chamado do dever (Keitel: "Para um soldado, ordens são ordens"; Kaltenbrunner: "Só cumpri meu dever como órgão de informação"), ou porque o destino fora demais para eles (Funk: "Se sou considerado culpado... por erro ou ignorância, então minha culpa é uma tragédia humana, não um crime"). Os dois mais jovens, von Schirach e Fritzsche, forçados subitamente a encarar seu Terceiro Reich como ilusões destroçadas, pareceram genuinamente abalados, mas mesmo eles não conseguiram pronunciar uma única palavra espontânea de remorso ou arrependimento. Inicia-se o julgamento Às 10 horas da manhã do dia 20 de novembro, iniciou-se o julgamento, envolto na atmosfera tensa de uma grande ocasião. Mas o tribunal tomara o cuidado de manter sob controle os aspectos emocionais e espetaculares, restando apenas o mínimo de formalidade que a dignidade do tribunal exigia: não houve pompa cerimonial e nenhum esforço para se obter efeitos dramáticos. Os juízes russos estavam fardados, mas não ostentavam qualquer condecoração. Os outros trajavam simples togas pretas; no caso dos franceses, seus peitilhos tradicionais davam um toque de elegância formal. Os advogados da defesa usavam beca, mas os da acusação, não. Apenas a presença dos guardas militares americanos, com seus vistosos capacetes, lembrava, visualmente, que não se tratava de um julgamento comum. As palavras de abertura do Lorde-Juiz Lawrence foram solenes em conteúdo, mas admiravelmente livres de pomposidade: "O julgamento que ora se inicia é único na história da jurisprudência mundial, sendo de suprema importância para milhões de pessoas em todo o globo. Por esta razão, cabe a todos os que participam deste julgamento a responsabilidade solene de cumprir seus deveres sem temor nem favor, de acordo com os sagrados princípios da Lei e da Justiça. Tendo os quatro signatários evocado o processo judicial, é dever de todos os interessados cuidar para que o julgamento não se afaste de modo algum desses princípios e tradições que dão à Justiça a sua autoridade e o lugar que ela deve ocupar nos assuntos de todos os estados civilizados." Como se fosse necessária uma demonstração para avisar às multidões que lotavam as galerias de visitantes e da imprensa que o julgamento não seria um prolongado festival dramático, o restante da sessão foi dedicado à leitura de toda a longa acusação, para fins de registro. Ninguém deu muita atenção, pois todos sabiam agora o que dizia a acusação, e na tarde do primeiro dia, como aconteceria com demasiada freqüência nos meses seguintes, o tédio desalentador dos detalhes técnicos desceu sobre o tribunal. No dia seguinte, depois que os réus negaram a acusação (Kaltenbrunner esteve hospitalizado durante os primeiros 16 dias do julgamento e não admitiu a veracidade da denúncia, mais tarde. Supôs-se que Borman, que estava ausente, também teria negado a acusação) e depois que o Presidente impediu firmemente o impaciente Göring de fazer um discurso, Jackson iniciou a leitura do libelo acusatório. A batalha forense que então começava duraria quase um ano, a despeito dos contínuos esforços do tribunal para eliminar matérias despropositadas e repetidas. Ninguém queria que tal acontecesse e, na verdade, a duração do julgamento é uma das suas desvantagens mais óbvias. A parte todas as considerações práticas e humanitárias, as questões essenciais ficaram indistintas e se perdeu grande parte do impacto moral potencial. Desde o momento em que a "Conferência de Londres" adotou o conceito de conspiração, ficou claro que o julgamento não poderia estar concluído dentro das poucas semanas que tinha, inicialmente, de prazo, mas, mesmo aqueles que conheciam a extensão e a complexidade dos problemas em exame não imaginavam que levariam tanto tempo para solvê-los. Então, por que aconteceu isso? Cremos que a razão principal encontra-se em certos defeitos do estatuto que o Tribunal tinha de obedecer. Os delegados haviam concordado com o texto da Carta depois de muita controvérsia, sob a pressão do tempo e antes que todas as diferenças pendentes sobre questões de política e jurisprudência tivessem sido plenamente esmiuçadas. Como resultado, a Carta registrava imprecisões e ambigüidades, deixando considerável margem para interpretação, sobretudo no que se refere à definição dos crimes capitulados no Artigo 6º. E, como era de esperar, a acusação apresentou suas alegações com base em interpretações muito amplas, algumas das quais o Tribunal acabou por rejeitar. Dois casos são particularmente importantes no nosso contexto: 1. A acusação afirmou que se teria iniciado a conspiração no momento da fundação do Partido Nazista e que, portanto, qualquer um teria participado desse crime, se tivesse dado apoio efetivo ao movimento nazista em qualquer momento de sua existência, entre 1919 e 1945. Se este ponto de vista tivesse sido aceito, homens como Schacht e von Papen, que tiveram papel saliente na subida de Hitler ao poder e na consolidação de seu deplorável governo, não teriam escapado à condenação. Mas o tribunal verificou que esta não era a lei. Permitam-nos citar a sentença: "A Carta não define Conspiração. Mas, na opinião do Tribunal, a conspiração deve ser claramente delineada em seu propósito. criminoso. Ela não deve estar muito distante do momento da decisão e ação. Para ser criminoso, o planejamento não deve apoiar-se apenas nas declarações de um programa partidário, como os encontrados nos 25 pontos do Partido Nazista, anunciados em 1920, ou nas afirmações políticas expressas no Mein Kampf, anos mais tarde. O tribunal deve examinar se havia um plano concreto para fazer guerra e determinar a posição dos participantes nesse plano concreto... É evidente que se planejou fazer guerra, já a 5 de novembro de 1937 e, provavelmente, antes disso." Mais adiante explicaremos a importância da data de 5 de novembro de 1937. 2. A acusação admitia que a conspiração para cometer crimes contra a humanidade também estava coberta pelos termos da Carta e que o terror exercido pelos nazistas dentro da Alemanha antes da deflagração da guerra estava dentro da jurisdição do tribunal. Quando se lê o enunciado do Artigo 6º, é fácil perceber como a acusação chegou a esta interpretação, mas o tribunal negou a validade das duas hipóteses. Quanto à primeira, declarou ele que "a Carta não define, como crime separado, qualquer conspiração exceto a de cometer atos de guerra de agressão", e quanto à segunda: "Com relação a Crimes contra a Humanidade, não há dúvida de que, adversários políticos foram assassinados na Alemanha antes da guerra e que muitos deles foram confinados em campos de concentração e em circunstâncias de grande horror e crueldade. Certamente a política de terror foi levada a cabo em larga escala e, em muitos casos, foi organizada e sistemática. A política seguida na Alemanha, antes da guerra de 1939, de perseguição, repressão e assassinato de civis que poderiam ser hostis ao governo foi empreendida da maneira mais implacável. A perseguição de judeus, no mesmo período, está confirmada sem a menor sombra de dúvida. Para serem admitidos como Crimes contra a Humanidade, necessário se torna que os atos perpetrados antes da deflagração da guerra tenham sido realizados na execução de, ou em conexão com qualquer crime dentro da jurisdição do tribunal. O tribunal é de opinião de que, ainda que muitos desses atos fossem crimes revoltantes e horríveis, não está satisfatoriamente comprovado que tais atos tenham sido perpetrados na execução de, ou em conexão com qualquer dos crimes previstos (na Carta do Tribunal). Portanto, o tribunal não pode fazer uma declaração geral de que os atos cometidos antes de 1939 foram Crimes contra a Humanidade, segundo o significado contido na Carta..." Houve outros exemplos deste tipo, mas o que citamos acima basta para comprovar nosso argumento. Não é preciso dizer que, uma vez feita uma acusação específica, a promotoria obrigava-se a apresentar provas, e os advogados de defesa tinham de receber a oportunidade de refutá-las; assim, passavam-se horas incontáveis no exame das provas, na inquirição e reinquirição de testemunhas e nos argumentos processuais relativos a questões que nem deveriam ter sido incluídas nas acusações. Isto não quer dizer que todo esse tempo foi completamente desperdiçado. De qualquer modo, dentro de limites razoáveis, era preciso determinar os antecedentes históricos gerais e a história pessoal do acusado. Mas não deixa de ser verdade que os trabalhos poderiam ter sido muito abreviados se as definições nas quais os juízes tinham de basear seus vereditos tivessem sido formuladas com maior clareza na Carta. Isto também teria impedido boa parcela da confusão de idéias que ainda existe com relação ao julgamento, pois grande parte da crítica feita às suas bases legais dirige-se contra a lei, tal como a acusação a compreendia, não contra a lei realmente aplicada. Jackson iniciou suas alegações com uma denúncia eloqüente da tirania nazista e uma declaração da sua crença ardente no princípio da justiça penal internacional, culminando com as seguintes palavras: "A civilização pergunta se a Justiça é tão lenta a ponto de ser completamente incapaz de lidar com delitos dessa magnitude, cometidos por criminosos dessa ordem de importância. Ela não espera que torneis impossível, de futuro, fazer a guerra. Ela espera, sim, que vossa ação jurídica coloque as forças do direito internacional, seus preceitos, suas proibições e, acima de tudo, suas sanções do lado da paz, para que homens e mulheres de boa vontade, em todos os países, possam ter "a liberdade de viver, sem depender da permissão de ninguém, sob a proteção da lei". Na frieza da palavra impressa, essa eloqüência soa falso, mas, se se pode confiar nas testemunhas oculares, a oração foi impressionante e adequada para as circunstâncias e para a atmosfera do momento. Jackson tampouco se limitou à eloqüência esperada da promotoria. Ele era suficientemente capaz de prever pelo menos algumas das explicações e contra-acusações que a defesa poderia apresentar. Não procurou apresentar um quadro em branco e preto: Os Estados Unidos e as outras nações, por não reverem o "Tratado de Versalhes" onde precisava ser revisto, por não lograrem encorajar os elementos verdadeiramente democratas na Alemanha, por ignorarem queixas justificadas, não estão isentos de culpa pelas condições que possibilitaram ao nazismo. E se os alemães foram os primeiros a demonstrar ao mundo todo os horrores da guerra total, os aliados mostraram ser bons alunos. Mais de uma vez ele deixou claro que o propósito dos trabalhos não era incriminar todo o povo alemão. Ele argumentou que, se o povo alemão tivesse aceito de boa vontade o programa de Hitler, os nazistas não teriam necessitado de "tropas de assalto", de uma Gestapo e de campos de concentração para estabelecer e consolidar seu poder. Que este argumento equivale a uma simplificação ingênua e excessiva de um problema, nada simples, de interpretação histórica, é outra questão; no tocante ao julgamento, não passava da pura verdade dizer que a idéia de uma culpa coletiva "dos alemães" não encontraria lugar dentro do tribunal, e a reafirmação dessa verdade por Jackson foi oportuna e eficaz. Ao mesmo tempo, estava claro que a questão da culpa ou inocência dos vinte e dois indivíduos não era a única questão em debate. O julgamento seria, acima de tudo, um instrumento de justiça penal, mas lembramo-nos de que outro dos seus propósitos reconhecidos era o de pôr a nu e desacreditar moralmente a realidade do nazismo em todas as suas manifestações, bem como faze-lo de maneira tal que nenhum colorido histórico jamais conseguisse ocultar a verdade essencial. Havia mais que simples zelo moralizador nesse objetivo - na prática, ele fazia sentido, pois se a ascensão e a queda do Terceiro Reich era, por qualquer avaliação sóbria, um capítulo negro na história alemã, ele não deixava de ter certo interesse como história de aventuras, na escala mais ampla. Visto de longe, no tempo, ele pode muito bem transformar-se num mito nacional perigoso. É verdade que, imediatamente apos a derrota, a maioria dos alemães estava desiludida, envergonhada da ignomínia cometida em seu nome e odiando os líderes que, no fim, a haviam abandonado. Mas o povo alemão estava enfrentando, ao que parecia, muitos anos, senão décadas, de dificuldades e impotência política: não seria ele, cedo ou tarde, tentado a olhar para os anos de poder e conquista, sob o domínio de Hitler, como uma época de grandeza nacional, e tentar atenuar os crimes e loucuras que inevitavelmente levaram à catástrofe? Algo parecido ocorrera depois da Primeira Guerra Mundial, com desastrosas conseqüências, e não havia razão para supor que tal não ocorresse novamente. Hermann Göring, cujo nome encabeçava a lista de acusados, previu com confiança que assim seria, esperando que essa possibilidade inspirasse seus companheiros de prisão a fazer uma última defesa do nazismo, num espírito de solidariedade e desafio. Informa-se ter ele dito a Funk, certa ocasião: "Você deve aceitar o fato de que sua vida está perdida. O que resta saber é se está disposto a ficar do meu lado e morrer como mártir. Não se sinta tão triste; algum dia, o povo alemão se levantará novamente e nossos ossos serão trasladados para ataúdes de mármore, num monumento nacional." Mas, ao contrário do que a maioria esperava de homens que eram havidos como discípulos fanáticos de Hitler e do hitlerismo, não era natural uma atitude de Nibelungéntreue, de fidelidade até a morte, nos acusados de Nuremberg. O fanatismo demonstrado durante o fastígio do hitlerismo evanesceu ao esfumar-se o delírio do insano, senão antes, sobrevivendo apenas nas crises de exaltação mórbida de Streicher e talvez, como imagem refletida, no complexo de culpa de Hans Frank, com seus inequívocos elementos histéricos. De modo geral, os acusados não demonstraram nem arrependimento profundo pelo seu passado nazista nem muita relutância em renegar suas antigas lealdades. Não há dúvida de que, neste sentido, eles foram encorajados pelos seus consultores jurídicos, em virtude de razões óbvias. Mesmo assim, sentimo-nos um pouco chocados com a displicência com que um acusado após outro ignorava o credo nazista, como algo que nunca tivessem levado a sério: as doutrinas da luta de raça e do "sangue e solo", a glorificação da guerra e do poder, toda a ideologia antidemocrática, anticristã, antilibertária e anti-racional do Mein Kampf. Mesmo Rosenberg, o filósofo nazista, ao que manifestava então, não devia ser levado muito a sério sobre o que escreveu. Quanto ao Führer, não há como negar que todos eles haviam estado sob seu encanto hipnótico, até que descobriram - alguns mais cedo, outros mais tarde, mas todos tarde demais para fazer algo - que ele era um "mentiroso compulsivo", um "neurótico a quem o sucesso havia transformado num louco", o "destruidor do seu próprio povo". A famosa magia da personalidade de Hitler não causara um impacto suficientemente profundo para sobreviver ao seu fracasso e morte. Os homens que estavam sendo julgados em Nuremberg pareciam lembrar-se dele sem o menor afeto ou estima. Uma crença, ardente e compartilhada, numa causa política, muito embora derrotada, e uma devoção comum à memória do seu líder morto poderiam ter criado um espírito de camaradagem, a despeito das disparidades existentes em caráter, educação e antecedentes sociais. Mas na verdade havia muito pouca fraternidade. Embora esses homens estivessem na mesma prisão e fossem processados perante o mesmo tribunal, enfrentando a mesma acusação, não se podia dizer que estavam todos no mesmo barco, pois, como observamos mais atrás, a natureza e o alcance do envolvimento nos supostos crimes diferiam muito de um acusado para outro. Compreendendo isto, cada um deles estava basicamente interessado no preparo da sua defesa pessoal e temerosos de que seriam prejudicados com a associação com companheiros cujos casos pareciam piores que o seu. Streicher era o pária do grupo, cuja companhia era sempre evitada por todos. Quanto a Kaltenbrunner, que não estivera presente nos primeiros dias do julgamento por motivo de doença, ao regressar do hospital se viu quase que totalmente isolado: a maioria dos outros achava que a companhia do Chefe do SD das SS, com sua "cara de cavalo manhoso" (a descrição é de Rebecca West), era constrangedora. Schacht, com um ar provocador de afetada respeitabilidade e superioridade intelectual, deixou claro para todos que se considerava o único acusado que não tinha nada a temer; talvez um ou dois mais pudessem alimentar esperança de absolvição, mas o resto não passava de criminosos comuns. Os generais e almirantes, insistindo que o código de disciplina militar os absolvia automaticamente de responsabilidade moral e legal, negavam que, mesmo no contexto de um estado totalitário, pudesse ser usada a mesma linha de defesa para os "porcos das ST" ou para os administradores políticos. O que alguns dos outros pensavam sobre a tentativa das altas patentes de se abrigarem por trás de "ordens superiores" foi vigorosamente expressado por Speer: "Eles fizeram grandes discursos heróicos sobre luta e morte pela pátria, sem se arriscarem. E agora, quando têm a vida em perigo, tremem e procuram todos os tipos de desculpas. Este é o tipo de heróis que dirigiram a Alemanha para a destruição." Seria ilusório tentar tirar proveito deste e de outros indícios de discórdia entre os acusados. Estamos tratando da primeira parte do julgamento, quando apenas um ou dois deles já haviam tomado posições firmes em resposta à acusação. Exceto nos esboços mais vagos, os acusados ainda ignoravam as inquirições individuais a que teriam de responder, e as provas que seus acusadores tinham prontas. O estado de espírito e a atitude podiam mudar, rápida e radicalmente, a cada novo desenvolvimento da batalha forense. Não obstante, restava a impressão predominante de que nenhum dos acusados, com uma notável exceção, faria questão de "não" implicar seus companheiros, e, na medida em que a intenção era mostrar o caráter maléfico e criminoso do nazismo como tal, podia-se esperar que os acusados deporiam, na verdade, como testemunhas da acusação. Hermann Goring foi a exceção. O Nazista Número Um, que sobrevivera, estava em estado deplorável no fim da guerra. Anos de comodismo indisciplinado, inclusive vício em drogas, a consciência de ter fracassado como chefe da Luftwaffe e como ditador da economia de guerra alemã, a derrota na guerra de intrigas contra Himmler, Goebbels e Bormann, culminando na humilhação final da rejeição total por Hitler, tudo isso o arrastara à quase ruína mental e física. Todavia, a vida disciplinada da prisão, combinada com o tratamento que lhe ministraram, resultara numa recuperação extraordinária, de que muito se orgulhava o comandante americano da prisão. "Quando Göring veio de Mondorf para minha mão", disse o Coronel Andrus, "era um sujeito lerdo e atoleimado, com duas maletas cheias de paracodeína. Pensei que fosse um vendedor de drogas. Mas libertamo-lo do vício e o transformamos num homem". Haveria momentos em que o Juiz Jackson e seus colaboradores amaldiçoariam a eficiência do coronel e dos psiquiatras da prisão, neste caso específico, pois não demorou muito para que Gõöring fizesse um esforço decidido para reunir seus companheiros de prisão em torno de si, e transformá-los numa frente sólida e unida. Tivesse ele conseguido isto e a tarefa da promotoria teria sido muito mais difícil. Houve momentos em que parecia ter logrado sucesso. Juntamente com as aptidões física e mental, Göring recuperara a velha arrogância e combatividade. Depois do doloroso período de declínio e frustração, ele via no julgamento a sua última chance de desempenhar um papel importante e de se projetar na admiração de uma platéia mundial. Não tinha ilusões quanto ao que lhe estava reservado e não se estava vangloriando, quando proclamava repetidamente que não lhe importava o desaparecimento mais cedo nas mãos do carrasco, ou mais tarde de algum outro modo; "jamais temera a morte". Contudo, estava profundamente preocupado com sua "reputação na história", conforme disse, e, quando estava num dos seus estados mais eufóricos, realmente acreditava que seu sonho do futuro monumento nacional, e do ataúde de mármore, podia vir a realizar-se. Grande parte dependeria da maneira como ele e os outros cujas vidas estavam sendo julgadas se comportassem durante a provação. Ele compreendia claramente as inferências maiores do lado político do julgamento. Assim como o aniquilamento moral do nazismo era, para a promotoria, mais importante do que a punição de criminosos individuais, o objetivo principal de Göring era prejudicar a cruzada política liderada por Jackson. E, como nada tinha a perder, Göring podia lançar-se à tentativa com todo o entusiasmo. Göring não só conseguiu tornar-se o foco da atenção pública, mas também, no processo, criou para si uma grande dose de respeito e simpatia, ainda que mais ou menos relutantes. Jornalistas, visitantes, pessoal do tribunal e até mesmo alguns dos juízes e advogados ficaram impressionados; e mais ainda porquanto o público em geral o subestimara muito, iludido pela imprensa, que o havia pintado como um bandido desmiolado, cuja aparência seria ridícula, quando privado dos seus esplêndidos uniformes e das medalhas cintilantes. É verdade que Der Dicke (O Gordo), como os alemães gostavam de chamá-lo, provavelmente nunca teve um pensamento profundo ou original em sua vida e seus vangloriados interesses culturais eram uma grande farsa, mas ele possuía considerável inteligência prática. Nos testes de inteligência aplicados pelo Dr. Gilbert aos prisioneiros, Göring foi o segundo, sendo superado apenas por Schacht. Tinha excelente memória para fatos e números, normalmente captava o ponto essencial de um argumento aparentemente complexo, e era em geral muito arguto ao jogar com as fraquezas de outros: em suma, teria sido um bom advogado. Também era um ator nato. O papel que decidiu desempenhar no palco de Nuremberg era o do veterano, de fala rude, com um coração de ouro; um combatente violento que não guarda rancor, terminada a luta; um realista lúcido e um amante das boas coisas da vida, que despreza as ilusões e a simulação; um homem que tudo arrisca, e um bom perdedor; um patriota simples, que desconfia de todas as ideologias políticas. Quando uma testemunha o descreveu como "a última personalidade da Renascença", Göring ficou encantado. Era exatamente este o efeito que procurava causar, e o homem realmente esforçava-se bastante, em seu desempenho, para tornar o papel convincente, pelo menos para os que não o observavam com muito cuidado. Confundir expansividade com boa índole e cinismo com honestidade intelectual é um erro muito comum. Na realidade, Göring nem tinha boa índole nem era honesto. Ele diferia do resto do círculo de Hitler na medida em que os atos de destruição e o espetáculo de sofrimentos não lhe davam um prazer perverso; neste sentido, ele não era de natureza má. Porém, para satisfação da sua vaidade e cobiça, ele mentiria e mataria com a máxima impiedade. Seu senso de humor - ele tinha realmente certo senso de humor - era grosseiro e destituído de calor humano. Ainda assim, à medida que a atmosfera do julgamento se tornava cada vez mais opressiva, suas gargalhadas freqüentes e sua linguagem obscena traziam um ligeiro alívio, sempre bem-vindo no ambiente tenso do tribunal. Outros réus seguiram caminho mais consentâneo, e tentaram explicar sua conduta passada afirmando terem sido instrumentos relutantes do ditador, sem poderes de decisão próprios; mas, para Góöring, esse tipo de defesa era inconcebível; teria sido contrário à sua natureza truculenta, e totalmente incompatível com seu desejo de ser reconhecido como homem de estatura histórica. Naturalmente, o seu bom senso deve ter-lhe feito crer que não teria a menor chance de que acreditassem nele, por ter estado ativa e proeminentemente envolvido em todos os aspectos do nazismo. Sua orgulhosa declaração, repetida sempre que se oferecia oportunidade, de que estava preparado "para assumir toda a responsabilidade" de qualquer ato que tivesse cometido ou de que tivesse conhecimento, pareceu impressionante, mas o que isto queria dizer? Na realidade, ele não tinha muito que escolher. Onde se podia provar sua participação num crime, não fazia diferença se ele "aceitava a responsabilidade" ou não; onde não havia prova suficiente em contrário, ele podia afirmar ignorância do crime cometido - como todos os outros. Idênticas ponderações se aplicam às expressões de lealdade de Göring a Hitler. Num momento em que o nome de Adolf Hitler estava sendo execrado por milhares de ex-seguidores, que agora procuravam bajular os vencedores, Göring mostrou um instinto mais lógico, ao se recusar a falar em termos depreciativos do falecido Führer. Todavia, examinando-se mais atentamente suas palavras de louvor a Hitler, essas parecem bastante indiferentes, havendo nelas mais do que simples sugestão de críticas mantidas em reserva. Sente-se que Göring estava convidando os ouvintes a apreciar, não tanto o caráter e gênio de Hitler, mas a virtude dele, Göring, em conservar sua lealdade. Nesse ponto ele não corria nenhum perigo; uma declaração geral de lealdade só lhe podia acentuar o prestígio. Restava ver se ele teria a força de manter a atitude no banco das testemunhas, sob a pressão da reinquirição. Contudo, somente um observador particularmente arguto, ou alguém que conhecesse Göring muito bem, poderia reconhecer a insinceridade das suas admiráveis atitudes. De modo geral, durante os três meses e meio que a promotoria precisou para a apresentação das provas, sua truculência espirituosa, ainda que desavergonhada, parecia quase admirável, se comparada com a exibição - patética - de medo evidente e abjeto de Ribbentrop, por exemplo, ou a falta de dignidade por parte do Feldmarechal von Keitel, que ficava logo em posição de sentido toda vez que um simples soldado em uniforme aliado lhe dirigia a palavra; ou o ar de desumana impiedade de Kaltenbrunner e Frick. Quaisquer que fossem os malefícios passados do "Gordo", grandes parcelas do público estavam começando a considera-lo - ingenuamente, se quiserem, mas compreensivelmente - como um "sujeito e tanto"; reputação esta que até certo ponto ainda perdura, e que sem dúvida se deve, em parte, ao fato de, no final, ter escapado ao carrasco. O aparecimento de uma legenda de Göring, que não podia deixar de ter seus efeitos sobre todos os acusados, era a última coisa que Jackson queria ou esperava; mas permitam-nos observar que Göring não poderia ter desempenhado seu papel com sucesso, durante qualquer período de tempo, se os objetivos da acusação tivessem sido menos ambiciosos. A acusação, formulada em termos amplos e muito imprecisos, por "crimes contra a paz" permitiu a Göring dirigir seus ataques verbais contra as partes políticas, portanto, mais vulneráveis, das alegações da acusação, ao mesmo tempo que evitava enfrentar o tópico fatal, isto é, da sua responsabilidade por atrocidades sistemáticas. Crente firme do princípio do qui s'excuse, s'accuse, ele enfrentou a acusação de "fomentador de guerra" com a contra-acusação de "hipocrisia". Não era o planejamento e o preparativo de guerra um crime internacional? Como se as nações vencedoras já não estivessem afiando suas armas para futuros conflitos sangrentos entre si. (O discurso de Churchill em Fulton, a 2 de março de 1946, o primeiro reconhecimento público, por parte de importante estadista, de que havia um estado de "guerra fria", provocou viva satisfação entre os prisioneiros de Nuremberg.) E não era a mais pura mistificação o fato de os representantes da União Soviética estarem julgando outros pelo crime de planejar um ataque à Polônia? Todos os acusados haviam pensado nesses pontos óbvios, mas Göring foi o primeiro a proclamá-los em altos brados. Usando habilmente ora a lisonja, ora a intimidação, Göring fez um esforço sistemático para reunir sob sua bandeira tantos dos seus companheiros de prisão quanto possível. Para ele foi uma luta difícil. Mas, embora seja verdade que nenhum dos outros acusados se revelasse disposto a identificar-se com o derrotado regime nazista tanto quanto Göring, somente dois deles resistiram-no firme e sistematicamente até o fim. Um era o velho inimigo de Göring, Schacht, cuja posição era muito forte, porquanto havia rompido com o nazismo relativamente bem cedo; no seu caso, a escolha natural era uma política de "esplêndido isolamento". Albert Speer, como se tornou evidente depois de algum tempo, era um antagonista mais eficaz ainda - o que foi inesperado por ter sido ele, a princípio, uma figura fechada e obscura. Sua violenta condenação da liderança nazista em geral, e de Göring, seu sobrevivente mais importante, em particular, teve muito mais peso, pois Speer a ligou ao reconhecimento irrestrito da sua própria responsabilidade. Contudo, os outros vacilaram, submetendo-se ao domínio de Göring em diferentes graus e por períodos de variada extensão. Esse comportamento é perfeitamente compreensível, pois lhes teria sido extremamente difícil permanecer insensíveis aos apelos que Göring fez à sua lealdade e ao seu orgulho viril. A proposta estratégia de defesa agressiva tinha seus atrativos. Ademais, eles ainda temiam bastante este homem, outrora enormemente poderoso e formidável. Embora estivessem cônscios de que Göring não tinha mais o direito de comandar, e nenhum meio de lhes impor sua vontade, sentiram dificuldades em livrar-se do hábito da obediência. Muitas vezes, sua intromissão na consulta dos outros com seus advogados era humildemente tolerada. Houve casos em que um acusado, prestes a tomar uma atitude aconselhada por seu advogado, voltava atrás ao confrontar o furioso veto de Göring. Em meados de fevereiro de 1946, as autoridades estavam preocupadas com esta situação a ponto de emitirem novos regulamentos para dominar a influência de Göring sobre os outros prisioneiros. Na prisão, os acusados deviam ser mantidos em estrito isolamento, inclusive durante o período de exercícios; também não lhes permitiram mais as refeições em conjunto, como antes, na mesma sala, e sim em seis salas diferentes - Göring, sozinho; os outros vinte indiciados em grupos de quatro. Tais medidas nos parecem agora um modo canhestro e mesquinho de enfrentar as ameaças do "Gordo"; elas eram o sintoma de uma atmosfera progressivamente claustrofóbica. Em seu Diário de Nuremberg, o Dr. G. M. Gilbert nos deu um relato detalhado e, em certas partes, divertido desta batalha travada nos bastidores, mas, embora a história esteja cheia de interesse psicológico, ela tem pouca importância, no que se refere ao julgamento. A frente unida, exigida por Göring (que, repetimos, sabia que nada tinha a perder), não foi, em tempo algum, uma possibilidade prática. Não era possível transformar os prisioneiros de Nuremberg em heróis. A maioria deles imaginava, acertada ou erroneamente, que podia melhorar suas chances no tribunal, repudiando a antiga lealdade e, portanto, a repudiariam totalmente, no fim. Na linguagem grosseira de Göring, "eles venderiam a alma para salvar seus pescoços imundos". Na verdade, não tinha importância. Desafio ou arrependimento, negativas ou confissão, solidariedade ou o egoísmo do cada um por si, em última análise, só duas coisas contavam realmente: o peso das provas e a interpretação da lei pelos juízes. Documentos importantes Muita gente - lamentavelmente, também alguns historiadores eminentes - parece ter idéias muito curiosas sobre o que foi provado ou refutado, ou que restou de duvidoso das provas examinadas em Nuremberg. Mas devemos reconhecer que não é fácil extrair-se uma idéia geral e clara das provas. Até agora ninguém conseguiu escrever um sumário do caso relativamente conciso e correto (a tentativa mais útil, feita pelo Professor Whitney R. Harris, em Tyranny on Trial, omite quase que totalmente as alegações da defesa - e, mesmo assim, atinge a mais de 400 páginas). Somente uns poucos especialistas se animariam a enfrentar a tarefa, sem dúvida gigantesca, de examinar os quarenta volumes do relatório do julgamento. Os juízes já estavam no conhecimento do problema quando deram seus vereditos, conforme mostra este trecho: "As provas têm sido esmagadoras, em volume e detalhes. É impossível para este tribunal examiná-las adequadamente, ou registrar a quantidade de provas documentais e orais que têm sido apresentadas." Não é apenas o simples volume do material que torna extremamente difícil separar os pontos essenciais da evidência do que é inadequado, ou relativamente comum. Outros fatores são a grande disparidade na natureza dos pretensos crimes, a incerteza de alguns dos conceitos legais básicos e as deficiências da processualística do tribunal, que teve de ser em grande parte improvisada para um tipo novo de julgamento. Se tentarmos ler as transcrições do julgamento em ordem cronológica, sessão por sessão, logo nos perderemos no labirinto de detalhes aparentemente desconexos. Somente depois de demoradíssimo estudo é que se começa a discernir os contornos de um padrão subjacente, ou melhor, de vários padrões sobrepostos. No começo, os quatro grupos da acusação concordaram numa divisão de trabalho, separando o assunto do julgamento em categorias definidas de modo geral, correspondendo em parte aos quatro pontos da denúncia e, em parte, à localização geográfica dos crimes. Os americanos, que eram a equipe maior, tratariam do Plano Comum e da Guerra de Agressão; os britânicos (dirigidos por Sir Hartley Shawcross - como líder oficial da delegação britânica, Shawcross pronunciou as orações de abertura e encerramento, mas seu adjunto, Maxwell-Fyfe, dirigiu as alegações britânicas no tocante às provas), cuidariam dos crimes em alto mar e das violações dos tratados; os soviéticos (dirigidos pelo General Rudenko) tratariam dos Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade no Leste; e os franceses (no início dirigidos por M. de Menthon e, depois, por M. Champetière de Ribon), tratariam de crimes idênticos no Oeste. Evidentemente, este plano de trabalho não podia ser obedecido muito rigorosamente ainda que no primeiro estágio, quando as provas estavam sendo preparadas, e muito menos durante os trabalhos nas sessões do tribunal. Era inevitável que houvesse excessiva superposição e repetição, por mais que os magistrados tentassem evitá-las. Lorde Kilmuir chamou a atenção para outro fator que causava complicação: "Tendo apresentado as provas horizontalmente, por assim dizer, para abranger a acusação, elas tinham de ser resumidas verticalmente para mostrar como cada acusado estava implicado." Por último, para facilitar as coisas, as provas contra as organizações acusadas foram abordadas em audiências separadas, perante comissários, embora abrangessem em grande parte o mesmo terreno coberto pelas provas apresentadas diretamente ao tribunal. " Se o tribunal não podia examinar adequadamente a prova durante a audiência, por certo não podemos faze-lo no espaço deste livro. O que nos propomos é indicar as linhas gerais segundo as quais se conduziram as alegações da defesa e da acusação, citar alguns itens importantes das provas nas quais o tribunal depositava particular confiança e, assim, talvez eliminar alguns equívocos que se popularizaram. Mas, embora não possamos fazer um sumário das provas, podemos afirmar que o conjunto de provas aceito pelo tribunal tem resistido aos testes de pesquisa histórica, que tem sido intensa e muitas vezes hostil, e que, por mais controvertidas que algumas conclusões possam ser, há muito pouca coisa, em suas descobertas concretas, das quais se possa duvidar seriamente. Como explicamos mais atrás, a acusação continha muitos pontos sobre os quais, no final, os juízes se recusaram a decidir, não porque a acusação falhasse em "provar" sua veracidade sem qualquer dúvida razoável, mas porque os atos em questão não estavam suficientemente ligados com a guerra e, portanto, na opinião do Tribunal Militar Internacional, não eram crimes a serem julgados nos termos da Carta do TMI. Assim, grande parte dos trabalhos realizados na sala do tribunal - podemos dizer que em proporção grande demais - foi dedicada a questões sem nenhuma importância legal, ou de importância indireta para esse julgamento, embora algumas delas constituíssem crimes que um tribunal alemão poderia julgar adequadamente. As primeiras tentativas nazistas de derrubar a "República de Weimar" pela força; a subversão subseqüente da democracia alemã; o fluxo interminável de propaganda racial e chauvinista; a tomada do poder por fraude e logro, e a consolidação do poder por meio do terror; o tormento das igrejas cristãs; a perseguição aos judeus antes da guerra - a história desses acontecimentos enche centenas de páginas dos registros do julgamento, mas nenhum dos acusados em Nuremberg foi punido por qualquer desses crimes. Tampouco, ao contrário do que muita gente ainda crê, o rearmamento da Alemanha ou outros preparativos gerais para a guerra como tal foram considerados crimes contra a paz, quer tenham constituído ou não infrações do "Tratado de Versalhes", e isto inclui as tomadas da Áustria e da Tchecoslováquia que, tendo sido realizadas por ameaça de força, foram classificadas como "ações agressivas", não como guerras de agressão. Mas devemos observar uma vez mais que a promotoria não podia ter evitado a introdução de todas essas questões até certo ponto, mesmo que tivesse interpretado os artigos da Carta de maneira tão restrita como o fizeram os juízes posteriormente. Os juízes, que durante todo o julgamento mostraram-se ansiosos por excluir ao máximo possível questões legalmente inadequadas, reconheceram expressamente isto na sentença. Um trecho característico reza o seguinte: "A guerra contra a Polônia não ocorreu subitamente... Pois os desígnios agressivos do governo nazista não foram acidentes resultantes da situação política imediata da Europa e do mundo; eles foram parte deliberada e essencial da política externa nazista." De igual modo, as piores atrocidades e atos de genocídio tiveram muito pouco que ver com as exigências da guerra ou com o enfraquecimento das inibições morais que é inseparável de uma luta prolongada e amarga: elas só podiam ocorrer tal como ocorreram porque o veneno do ódio racial fora um elemento essencial da doutrinação nazista, desde o começo do movimento. Para o tribunal, era nitidamente importante avaliar os fatos à luz da significação histórica dos crimes imputados, e devemos lembrar-nos de que o registro nazista ainda não havia sido divulgado ao mundo, na forma de um relato coerente e documentado. Entretanto, como suas características notáveis devem agora ser consideradas como conhecimento comum, podemos limitar aqui os nossos comentários à prova direta dos crimes de que foram os réus acusados. Comecemos com os crimes contra a paz, definidos no Artigo da Acusação sob n° 2 como participação no planejamento, preparativo, iniciação e empreendimento de guerras de agressão. (O n° 1 da denúncia não precisa ser examinado em separado, pois, em vista da decisão do tribunal de que "a conspiração não deve estar muito distante do momento da decisão e ação", não parece haver distinção real entre "conspiração" e "participação no planejamento e preparativo.") Naturalmente, foi muito fácil para a promotoria mostrar que a Alemanha nazista era culpada daquilo que a denúncia chamara "guerras de agressão, que também eram guerras que infringiam tratados, acordos e garantias internacionais." Neste contexto, não importava muito que a Carta do TMI deixasse de formular com precisão o que queria dizer por "guerras de agressão", pois qualquer que fosse a definição de "agressivo" que se pudesse adotar, ela se aplicaria ao caso; incontestavelmente a Alemanha atacou a Polônia, Dinamarca, Noruega, os Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Iugoslávia, Grécia e a URSS, embora nenhum desses países tivesse cometido, ou ameaçado cometer, qualquer ato de hostilidade contra a Alemanha. A promotoria não precisou referir-se ao Tratado de Versalhes ou a outras obrigações legais que o regime de Hitler herdara da "Repmblica de Weimar", e que o Führer alegava estar moralmente justificado em repudiar. O governo nazista, ao cometer as agressões de que foi acusado, rompeu indubitavelmente as garantias formais e voluntárias de que respeitaria a inviolabilidade dos países que agrediu. Contudo, parecia menos fácil fixar com razoável exatidão o momento, no tempo, em que as tendências geralmente agressivas do nazismo se transformaram em objetivos expansionistas concretos, a serem alcançados, assim que a chantagem política deixasse de ser eficaz, pela força das armas. Entretanto, era preciso determinar este momento decisivo - do contrário, de que maneira o tribunal poderia determinar quais dos acusados - se houvesse algum - estavam implicados na acusação de "conspiração" ou planejamento de guerra de agressão? Para a promotoria, foi um golpe de sorte a descoberta, no meio de arquivos alemães capturados, de quatro documentos importantes que, lidos contra o pano de fundo dos acontecimentos reais, proporcionaram uma prova realmente formidável de três fatos fundamentais: primeiro, que em novembro de 1937, senão antes, as intenções de Hitler se haviam transformado em decisão; segundo, que daí em diante o planejamento da agressão foi definido e coerente em todos os detalhes, deixando apenas a sincronização precisa e outros detalhes para serem determinados por oportunidades e contingências futuras; terceiro, que num ou noutro momento, durante esse período, os elementos de cúpula dos setores militar e civil foram informados da decisão de Hitler. Com esta prova documental, já não era mais uma questão de simples conjetura o fato de que havia um plano diretor de agressão, ajudado e favorecido pelo menos por alguns dos acusados. O mais antigo desses quatro documentos tornou-se famoso como o chamado Memorando de Hossbach. Ele consiste de uma nota longa e cuidadosa (embora não literal), compilada pelo ajudante-de-ordens pessoal de Hitler, Hossbach, de uma reunião realizada na Chancelaria do Reich a 5 de novembro de 1937. Além de Hitler e Hossbach, estavam presentes: o General von Blomberg, então Ministro da Guerra; o General von Fritsch, Comandante-Chefe do Exército, e três dos acusados de Nuremberg, a saber: Göring, Raeder e von Neurath, representando a Força Aérea, a Marinha e o Ministério das Relações Exteriores. Hitler convocara a reunião para fazer uma declaração programática de importância tão básica, que pediu aos presentes que a encarassem como seu testamento político, na eventualidade de sua morte. Começou com a suposição de que a falta de espaço vital adequado era o problema básico da Alemanha; problema cuja solução estava na Europa e não podia ser resolvido por meios pacíficos. Alguns excertos breves da nota de Hossbach falarão por si: "Não se trata de conquistar povos, mas de conquistar espaço agricolamente útil. Também seria mais conveniente procurar território produtor de matérias-primas na Europa, diretamente adjacente ao Reich, não além-mar... A história de todos os tempos - o Império Romano, o Império Britânico - prova que toda expansão territorial só pode ser realizada rompendo a resistência e correndo riscos. Para a Alemanha, a questão está em saber onde se pode fazer a maior conquista possível pelo menor custo." Que o território a ser conquistado teria de ser encontrado em algum lugar da Europa era evidente, mas, como Hitler observou, isto não queria dizer que se podia evitar conflito com as potências ocidentais. "A política alemã deve levar em conta seus dois odiosos inimigos, Inglaterra e França, para quem um poderoso colosso alemão no centro da Europa seria intolerável. Esses dois estados se oporiam a um fortalecimento ulterior da Alemanha, tanto na Europa como além-mar, e eles teriam apoio de todas as partes, nessa oposição... A questão alemã só pode ser resolvida pela força, e esta nunca é destituída de riscos. Se colocarmos a decisão - de aplicar força com risco - no alto das seguintes exposições, então resta-nos responder as perguntas "quando" e "como"... Mas Hitler ainda não estava pronto para decidir sobre o "quando" e o "como". Diferentes situações internacionais que poderiam surgir - em seu discurso, Hitler distinguiu três "casos" igualmente prováveis - exigiriam diferentes táticas. Contudo, em nenhuma circunstância a Alemanha poderia permitir-se adiar sua iniciativa por muito tempo: "Se o Führer ainda estiver vivo, então será sua decisão irrevogável resolver o problema do espaço alemão o mais tardar entre 1943 e 1945. A necessidade de ação antes de 1943-1945 será examinada nos Casos 2 e 3." Mas, embora ainda não estivesse certo sobre se esmagaria a oposição das potências ocidentais "antes" de iniciar uma guerra de conquista no Leste, ou o contrário, Hitler não tinha dúvidas de que, como medida estratégica preliminar, a primeira oportunidade favorável deveria ser usada para tomar a Áustria e a Tchecoslováquia: "Para robustecer nossa posição politico-militar, o primeiro objetivo, no caso de complicação bélica, será conquistar a Tchecoslováquia e a Áustria simultaneamente, para eliminar qualquer ameaça dos flancos, no caso de nosso possível avanço para o Oeste... A anexação dos dois países à Alemanha seria, do ponto de vista militar e político, de grande utilidade, porque melhoraria o problema das fronteiras, facilitaria o deslocamento de combatentes para todos os fins necessários, e nos possibilitaria a formação (com o pessoal das nações anexadas) de novos exércitos, até alcançarmos um efetivo de cerca de doze divisões." Se nos primeiros discursos e escritos de Hitler já houvesse referência a conquistas extraordinárias e ao domínio do mundo, teria sido possível encará-los como simples transportes de imaginação, destinados a satisfazer instintos nacionalistas demagógicos. Entrementes, Hitler adquirira poder e, com ele, responsabilidades. Na "Conferência de Hossbach" ele não se dirigiu a uma multidão emotiva, mas a uns poucos, aos seus principais lugares-tenentes; tampouco se referia a um futuro distante. Será crível que aqueles que o ouviram ainda estivessem céticos quanto à seriedade das suas intenções, como alguns deles pretenderam fazer acreditar, mais tarde? O outro documento importante foi um registro, feito pelo Major Schmundt, também ajudante-de-ordens de Hitler, de uma conferência militar realizada no gabinete do Führer, na Chancelaria do Reich, a 23 de maio de 1939. Entre os líderes militares presentes estavam Göring, Keitel e Raeder. Já então a Alemanha nazista havia anexado a Áustria e a Tchecoslováquia, em três momentos, sem ser obrigada a fazer guerra; a ameaça de guerra, ajudada pela política de pacificação da França e Grã-Bretanha, bastou para assegurar esses sucessos preliminares. Hitler solenemente renunciara então a todas as ambições territoriais ulteriores e, a 28 de abril de 1939, declarara que as intenções hostis da Alemanha para com a Polônia em particular "não passavam de invenção da imprensa internacional". Menos de um mês depois, a 23 de maio, é que ele notificou oficialmente, pela primeira vez, aos seus Comandantes-Chefes e ao Estado-Maior Geral da Wehrmacht sobre sua decisão de atacar a Polônia, deixando claro que a decisão não era uma conseqüência da Questão de Danzig ou de qualquer outro litígio diplomático entre a Alemanha e a Polônia: "Danzig não é de modo algum o motivo do litígio. Trata-se de expandir nosso espaço vital no Leste, de assegurar nossos suprimentos de alimentos e da solução do problema báltico. Só podemos esperar suprimentos de alimentos vindos de áreas esparsamente populadas. Além disso, a fertilidade natural e técnica alemã aumentarão enormemente o excedente. Não há nenhuma outra possibilidade na Europa... A solução do problema requer coragem. Fugir a esta solução, procurando uma adaptação às circunstâncias, é inadmissível. As circunstâncias devem ser adaptadas às necessidades. Isto é impossível sem a invasão de estados estrangeiros ou ataques às propriedades estrangeiras.. . "Portanto, não há como poupar a Polônia, restando-nos a decisão de atacá-la na primeira oportunidade apropriada. Não podemos esperar uma repetição do caso tcheco (conquista pacífica, à custa de ameaças). Haverá guerra. É imperioso que se isole a Polônia. O êxito do isolamento será decisivo ... O seu isolamento é uma questão de habilidade política." E se, afinal, a habilidade política fosse incapaz de impedir que Grã-Bretanha e França corressem em auxílio da Polônia, então a Alemanha deveria concentrar-se primeiramente na guerra no Oeste: "A guerra com a Inglaterra e a França será uma luta de vida ou morte". Embora a política de isolamento da Polônia não obtivesse êxito total, parte importante dela completou-se a 22 de agosto de 1939, quando da assinatura do pacto de não-agressão entre a Alemanha e a União Soviética. No mesmo dia, Hitler tornou a convocar seus Comandantes-Chefes para dizer-lhes que era chegado o momento de agir. Existem três versões do sumário do discurso que ele fez nessa ocasião (um desses documentos referia-se a um segundo discurso, que Hitler teria pronunciado no mesmo dia, para outra platéia e essencialmente sobre os mesmos pontos), diferindo em extensão e nos detalhes da redação, embora não em conteúdo. Citamos uma das versões: "Para mim, sempre foi evidente que, cedo ou tarde, teremos um conflito com a Polônia. Já tomara esta decisão na primavera... Queria estabelecer uma relação aceitável com a Polônia, a fim de lutar primeiro contra o Oeste. Mas este plano, que me era agradável, não pode ser realizado, já que pontos essenciais mudaram. Tornou-se-me claro que a Polônia nos atacará, em caso de conflito com o Oeste... "Agora a Polônia está na posição que eu queria... Só temo que no último momento algum porco imundo (Schweinehund) faça uma proposta de mediação... Já começamos a destruir a hegemonia da Inglaterra." E este trecho é de uma das outras versões: "O objetivo é eliminar forças vivas, e não chegar só a certa linha... Mesmo que tenhamos guerra no Oeste, a destruição da Polônia será o primeiro objetivo. Apresentarei uma causa propagandística para iniciar a guerra - não importa que seja, ou não, plausível. Depois não se perguntará ao vencedor se ele disse a verdade ou não. No começar e fazer uma guerra, o que conta não é o direito de faze-la, mas a vitória... "A ordem para iniciar será dada provavelmente no sábado, pela manhã [26 de agosto de 1939]." O quarto documento importante é também o registro, desta vez literal, de um discurso de Hitler, examinando, como frisa a Sentença do TMI, acontecimentos passados e reafirmando intenções agressivas. A reunião teve lugar a 23 de novembro de 1939, com a Polônia já conquistada e a guerra no Oeste em comppasso de espera. Hitler queria conscientizar a todos de que os triunfos obtidos se deviam não a uma sucessão bem explorada de acidentes históricos, mas à firmeza com que ele, o Führer, se tinha apegado aos elementos essenciais do seu grande plano, embora as medidas tomadas para a sua conclusão variassem com as circunstâncias. Eis como ele sintetiza as origens imediatas da guerra: "Um ano depois, veio a Áustria; este passo também foi considerado duvidoso. Ele trouxe considerável reforço para o Reich. A etapa seguinte foram a Boêmia, a Morávia e a Polônia. Também não foi possível realizar essa etapa numa única campanha. Primeiramente era preciso terminar as fortificações ocidentais (a "Linha Siegfried"). Não era possível atingir o objetivo num único esforço. Desde o começo, tornou-se-me evidente que não podia ficar satisfeito com o território dos Sudetos Alemães. Esta solução era apenas parcial. Tomou-se a decisão de invadir a Boêmia. Seguiu-se então a criação do Protetorado e com isto lançou-se a base para a ação contra a Polônia, mas para mim, na época, não estava muito claro se eu devia começar primeiro contra o Leste e depois contra o Oeste, ou vice versa... "Basicamente, não organizei as Forças Armadas para não atacar. Sempre tive a decisão de atacar. Queria resolver o problema, mais cedo ou mais tarde. Sob pressão, decidiu-se que o Leste deveria ser atacado em primeiro lugar." Esses registros reveladores estavam acompanhados de provas muito convincentes, como uma grande pasta de diretivas militares sobre o "Caso Verde" (operações contra a Tchecoslováquia), outra pasta sobre o "Caso Branco" (operações contra a Polônia), os diários do Ministro do Exterior italiano, Ciano, e as notas feitas pelo Embaixador Schmidt, o intérprete de Hitler. Este material; de cuja importância ninguém duvida, não estivera entre os poucos instrumentos de prova que a acusação apresentara juntamente com a denúncia. Portanto, quando, a 24 de novembro de 1945, as traduções alemães dos documentos importantes foram entregues aos advogados de defesa, o choque foi grande. A afirmação da acusação de que a guerra fora sistematicamente planejada e deliberadamente iniciada, parecera, inicialmente, apoiar-se em provas muito fracas, especialmente no tocante a um conhecimento culposo dos generais e almirantes. Só agora é que a maioria dos advogados de defesa começava a compreender que a acusação de uma conspiração contra a paz seria levada tão a sério quanto a denúncia de atrocidades. Nas notas publicadas do seu diário, o Dr. von der Lippe, assistente dos advogados de defesa de Raeder, registrou sua reação imediata ao primeiro exame que fez dos documentos importantes: "O menos que se pode dizer dos discursos de Hitler é que são extraordinariamente agressivos, arrogantes e autocontraditórios... Existem três versões do discurso de 22 de agosto de 1939. A pior delas é uma mixórdia de linguagem injuriosa e da mais selvagem provocação de guerra. Se essa versão fosse autêntica, as personalidades militares de alto escalão que o ouviram, inclusive Raeder, não poderiam ter deixado de reconhecer imediatamente que o orador era um criminoso. Se essa versão fosse correta, poderse-ia abrir mão imediatamente do sumário da defesa. Raeder e outros acusados, que estiveram presentes àquela reunião, afirmam que a versão é incorreta. Mas é de se reconhecer que é muito difícil tragar mesmo a versão mais branda do discurso. E as coisas não parecem melhores quanto aos outros documentos. E aqui surge claramente a questão de saber-se como os líderes militares puderam aceitar tais exposições e planos de Hitler, sem objeções." O que dissemos talvez baste para indicar a natureza das provas à disposição da promotoria, em conexão com os crimes contra a paz. A invasão da Polônia - o ato que iniciou a Segunda Guerra Mundial - foi evidentemente a agressão de maior importância, mas os documentos alemães capturados ofereceram provas idênticas e claras de agressão (seja como for que a definamos) também nos casos da Dinamarca, Noruega e todos os outros países vítimas. Os fatos comprovados por certo justificam a conclusão do tribunal de que o "planejamento e preparativo foram efetuados da maneira mais sistemática em todos os estágios". Mas efetuados por quem? Legalmente falando, disse a defesa, por Hitler e somente por Hitler, pois eram exclusivamente seus a iniciativa e o poder de decisão no Terceiro Reich totalitário. Este argumento, assim como a defesa correlata de "ordens superiores" (sobre a qual falaremos mais adiante), traz consigo uma plausibilidade superficial, embora um exame mais atento mostre que ela só é aceitável dentro de limites estritos. O Tribunal de Nuremberg assim explicou os critérios a serem aplicados: " O argumento de que tal planejamento comum não pode existir onde há uma ditadura completa é infundado... Hitler não poderia fazer guerra sozinho, Ele tinha de ter a cooperação de estadistas, líderes militares, diplomatas e homens de negócios. Quando estes, com o conhecimento dos seus objetivos, lhe deram cooperação, tornaram-se parte dos planos de Hitler. Eles não devem ser considerados inocentes porque Hitler os usou, se sabiam o que estavam fazendo. O fato de terem recebido suas tarefas de um ditador não os absolve da responsabilidade de seus atos. A relação entre líder e seguidor não exclui a responsabilidade neste caso, como não a exclui na tirania comparável do crime interno organizado." As frases: "com o conhecimento dos seus objetivos, lhe deram cooperação" e "se sabiam o que estavam fazendo" são claramente criticas. Portanto, além de provar o fato da agressão planejada, a promotoria foi chamada a mostrar como os denunciados nos termos dos Artigos de Acusação Um ou Dois estavam cientes dos objetivos de Hitler e o que se subentende por "cooperação". Mas, neste aspecto, havia, no mínimo, uma alegação poderosa contra todos os que tinham conhecimento dos assuntos registrados nos documentos importantes. Já citamos o registrado pelo advogado de defesa, von der Lippe; e outro alemão, o Embaixador Paul Schmidt, o extraordinário intérprete cujo depoimento é considerado valioso, porque seu trabalho lhe permitia inclusive observar de perto as reações dos participantes de importantes reuniões, declarou "conhecer, de modo geral, os objetivos dos líderes da Alemanha. Eram evidentes, desde o início, a saber, o domínio do Continente Europeu, a ser obtido primeiro pela incorporação de todos os grupos de língua alemã ao Reich e, segundo, pela expansão territorial de acordo com o lema do Lebensraum (espaço vital)." Provas abundantes Ao passarmos à análise das provas sobre atrocidades, não vemos como sustentar distinção entre os Artigos de Acusação Três e Quatro. Assim como, na opinião do tribunal, a conspiração, de que fala o Artigo de Acusação Um, e o planejamento e preparativo para guerra, de Artigo de Acusação Dois, equivaliam a crimes contra a paz", por serem virtualmente idênticos, também restava apenas uma distinção puramente técnica entre "crimes de guerra", por um lado, e, por outro, crimes cometidos em conexão com a guerra ou crimes contra a paz. Também só queremos referir-nos superficialmente à história de horrores que, narrada em Nuremberg pela primeira vez, tem sido muito comentada e repisada no mundo inteiro. O assassinato e os maltratos de prisioneiros de guerra, a espoliação de territórios ocupados, o terror exercido contra populações civis, o genocídio de judeus e ciganos, o uso de trabalho escravo - havia provas abundantes de que tais atos abomináveis foram perpetrados em escala gigantesca. Mas a determinação dos detalhes desses crimes caberia aos futuros julgamentos de criminosos de guerra "menores". Na sessão principal em Nuremberg, a finalidade era mostrar que quase todos os ultrajes, por mais distantes que estivessem entre si, no tempo e no espaço, haviam sido cometidos em obediência a um plano central que os acusados seguiram de muito boa vontade. Também para isto houve provas abundantes. Neste ponto a promotoria beneficiou-se da paixão alemã pelo procedimento organizado, que exigia que o andamento de qualquer ordem fosse rigorosamente registrado, em todos os estágios de tramitação, desde a fonte emanadora - com mais freqüência o próprio Führer - até aos executivos finais, e que a execução de tal ordem fosse devidamente confirmada por relatórios escritos. Na verdade, os registros dos atos mais clamorosamente criminosos foram minuciosamente feitos, inclusive durante as últimas semanas da guerra, quando as forças aliadas se aproximavam de todos os lados. Já mencionamos o fato de que a prova documental era suplementada pelo depoimento de testemunhas oculares, muitas das quais profundamente implicadas. É importante que se diga que ninguém, em Nuremberg, conseguia "comprar" imunidades - se tivesse implicações com os crimes ali apurados - pela simples apresentação, voluntária ou não, para depor contra quem quer que seja. A profusão de indícios e provas era grande, mesmo que ignoremos todos os itens que não são inteiramente concludentes, mas não podemos reproduzir aqui o efeito cumulativo irresistível. Infrações imprudentes ou deliberadas das leis que protegem prisioneiros de guerra podem ser cometidas por todos os beligerantes, em todas as guerras, embora apenas em casos isolados. Mas, para o nazistas, era uma questão de princípio ignorar a lei internacionalmente aceita, sempre que isto parecesse servir às suas finalidades. Os soldados russos foram as primeiras vítimas dessa atitude. Foi a 17 de julho de 1941, menos de um mês do início do ataque alemão contra a União Soviética, que a Gestapo emitiu a notória "Ordem dos Comissários", dispondo sobre o assassinato de certas categorias de prisioneiros soviéticos. Ela foi dirigida aos comandantes da Sipo e do SD, ligados a campos de prisioneiros de guerra (Stalags). Segundo o depoimento do Chefe do SD, Otto Ohlendorf, os poderes que os oficiais da Sipo e do SD usavam nos campos resultaram de acordo entre Himmler e os Comandos Supremos da Wehrmacht e do Exército. A ordem continha as seguintes instruções: "A missão dos Comandantes dos Sipo e SD nos Stalags é a investigação política de todos os internos no campo, a eliminação e "tratamento ulterior": (a) de todos os elementos políticos, criminosos ou, de algum outro modo, insuportáveis, existentes entre eles; (b) das pessoas que poderiam ser usadas para a reconstrução dos territórios ocupados. "Sobretudo, deve-se descobrir o seguinte: todos os funcionários importantes do estado e do Partido, especialmente os revolucionários profissionais; funcionários do Comintern; todos os funcuinários que fazem a política do Partido Comunista da União Soviética e suas organizações correlatas nos comitês centrais e nos comitês regionais e distritais; todos os Comissários do Povo e seus adjuntos; todos os ex-comissários políticos no Exército Vermelho; personalidades importantes das autoridades estatais regionais; importantes personalidades do mundo dos negócios; membros da Inteligência Soviética; todos os judeus; todos os agitadores ou comunistas fanáticos... As execuções não devem ser feitas no campo ou nas suas vizinhanças... Os prisioneiros devem ser levados para tratamento especial (apurou-se que a expressão "tratamento especial" significava "execução", no código dos comandantes dos campos de concentração), se possível no território tomado ao inimigo". A certa altura do julgamento, a defesa afirmou que a "Ordem dos Comissários" fora emitida em represália aos métodos brutais supostamente empregados pelo exército russo. Contudo, o general Walter Warlimont, Subchefe do Estado-Maior de Operações da Wehmacht, declarou em seu depoimento que as medidas preconizadas pela "Ordem dos Comissários" já haviam sido anunciadas por Hitler aos líderes da guerra, pouco antes da invasão da Rússia. Keitel admitiu, na reinquirição, ser verdadeira a declaração de Warlimont. Várias testemunhas afirmaram que a ordem foi cumprida com eficiência durante toda a guerra, embora se desconheça o número dos que morreram em virtude do seu cumprimento. Só em Auschwitz morreram asfixiados, sendo a seguir cremados, 20.000 prisioneiros de guerra russos - declarou, em depoimento, o comandante daquele campo de concentração, Rudolf Hoess. A intenção de tratar os prisioneiros de guerra russos com desrespeito das leis e dos costumes da guerra foi expressada numa forma ainda mais geral nos regulamentos do OKW emitidos a 8 de setembro de 1941, pelo general Reinecke, Chefe do Departamento de Prisioneiros de Guerra do Alto Comando: "O bolchevismo é o inimigo mortífero da Alemanha Nacional Socialista. O exército alemão está enfrentando na Rússia não apenas um oponente militar, mas um soldado fanatizado pelas idéias do bolchevismo, tão perniciosas para o povo. A luta contra o Nacional-Socialismo tornou-se parte do seu sistema... Portanto, o soldado bolchevista perdeu o direito ao tratamento dispensado ao adversário honrado, de acordo com a Convenção de Genebra... "A ordem para ação implacável e enérgica tem aplicação sempre que houver a mais ligeira indicação de insubordinação, especialmente no caso de fanáticos bolchevistas. Insubordinação, resistência ativa ou passiva, devem ser destruídas pela força das armas (baionetas, coronhas e armas de fogo)... Os prisioneiros de guerra que tentarem fugir devem ser abatidos a tiro sem advertência prévia... O uso de arma contra prisioneiros de guerra é, em regra, legal." Quando o Almirante Canaris, como chefe da Inteligência Militar, apresentou um protesto escrito contra a ordem de Reinecke, Keitel comentou na margem que as objeções se originavam do conceito militar de guerra cavalheiresca, mas como as medidas se referiam à destruição de uma ideologia, elas tinham sua aprovação e apoio. A Iugoslávia foi outro país onde os alemães condenaram os soldados inimigos de maneira idêntica. Segundo uma ordem do exército, datada de 12 de maio de 1943, todo soldado iugoslavo aprisionado devia ser considerado como bandido e "fuzilado após interrogatório". Por outro lado, no Oeste, o maltrato e assassinato de prisioneiros não ocorreram na mesma escala. Certamente houve excessos, entre os quais o massacre de 129 norte-americanos desarmados, em Malmedy, na Bélgica, durante a Batalha do Bolsão, em dezembro de 1944, foi um dos piores, mas houve apenas três categorias específicas de casos em que o assassinato de prisioneiros foi realizado com a sanção da cúpula. A primeira dessas categorias foi criada pela "Ordem de Comando", altamente secreta, de Hitler, de 18 de outubro de 1942: "Doravante, todos os inimigos em chamadas missões de comando na Europa ou na África, encontrados por tropas alemães, mesmo que tenham aparência de soldados em uniforme ou tropas de demolição, estejam armados ou não, em batalha ou em fuga, deverão ser mortos até o último homem... Mesmo que demonstrem estarem dispostos a entregar-se, por princípio não devem ser poupados... "Se membros individuais desses comandos... caírem nas mãos das forças armadas por algum outro meio, por exemplo, pela polícia nos territórios ocupados, devem ser imediatamente entregues ao SD. O aprisionamento sob guarda militar, em campos de prisioneiros de guerra, por exemplo, etc., está estritamente proibido... "Para que a conduta da guerra pela Alemanha não sofra danos graves, deve-se deixar claro para o adversário que todas as tropas de sabotagem serão exterminadas, sem exceção, até o último homem." A fuga e recuperação de prisioneiros formou a segunda categoria de casos, no período final da guerra, abrangidos pelo "Decreto da Bala" (Kugel-Erlass), emitido pelo Supremo Comando do Exército em março de 1944: "Os prisioneiros de guerra fugidos que tenham sido recuperados, e que sejam oficiais ou suboficiais, sargentos ou cabos, exceto os prisioneiros de guerra britânicos e norteamericanos, devem ser entregues ao Chefe da Sipo e do SD nos termos da denominada "Etapa III", quer a fuga tenha ocorrido durante o transporte, quer tenha sido uma fuga em massa ou individual... "Os prisioneiros de guerra britânicos e norte-americanos, oficiais, suboficiais, sargentos e cabos, que forem recapturados, devem ser detidos primeiramente fora do alcance da visão dos internados em campos de prisioneiros de guerra... Em todos os casos, o Comando do Corpo da Area solicitará imediatamente ao Supremo Comando do Exército (Chefe do Departamento de Prisioneiros de Guerra) uma decisão sobre se eles devem ser entregues ao Chefe da Sipo e do SD." O Chefe da Gestapo emitiu as seguintes instruções suplementares: "Os Diretórios da Polícia Secreta do Estado aceitarão os prisioneiros de guerra que forem oficiais e tenham fugido e sido recuperados, entregues pelos comandantes do campo, e os transportarão até o campo de concentração de Mauthausen... Os prisioneiros de guerra devem ser acorrentados durante o transporte - não a caminho da estação se puderem ser vistos pelo público. O comandante do campo em Mauthausen deve ser notificado de que a transferência é feita dentro do campo de ação da Kugel." Dois oficiais franceses, que tinham sido internados em Mauthausen, descreveram para o tribunal como a ação Kugel era completada naquele campo: "Os prisioneiros K eram levados diretamente para a prisão, onde eram despidos e dirigidos ao "banheiro". Este banheiro, situado nos porões do prédio da prisão, próximo do crematório, era projetado especialmente para execução [fuzilamento e asfixia]. "O fuzilamento era feito por meio de um aparelho de medição - o prisioneiro era colocado de costas contra a escala métrica, que era dotada de um dispositivo automático que disparava uma bala no seu pescoço, assim que a prancha móvel que determinava sua altura tocava o topo da sua cabeça. Se um transporte consistia de número muito grande de prisioneiros K... eram exterminados por gás que os chuveiros deixavam sair em lugar de água." O "Caso Sagan", tantas vezes comentado, em que cinqüenta oficiais da Real Força Aérea, que haviam fugido do campo de prisioneiros em Sagan, foram fuzilados pela Gestapo ao serem recuperados, foi, portanto, apenas um dos muitos assassinatos do mesmo tipo, exceto pelo detalhe de a execução desses oficiais britânicos ter sido efetuada por ordens diretas de Hitler. A terceira categoria: o "terror aéreo" aliado, isto é, ataques que os alemães pretendem terem sido dirigidos contra a população civil. Depois de vários linchamentos feitos por civis contra aviadores aliados que haviam sido derrubados, Himmler deu instruções, datadas de 10 de agosto de 1943, de que "não era tarefa da polícia intervir nos choques entre alemães e aviadores terroristas ingleses ou norte-americanos que tenham saltado de seus aviões". Pouco mais tarde, Kaltenbrunner ampliou essas instruções: "Todos os oficiais do SD e da Polícia de Segurança devem ser informados para que não interfiram nos ataques do povo contra aviadores terroristas ingleses e norte-americanos. Ao contrário, deve-se estimular este estado de espírito." Esse encorajamento à "Lei de Lynch" teve algum efeito, mas aparentemente não bastou para satisfazer a liderança nazista, pois numa ordem datada de 21 de maio de 1944, Hitler estipulou que "os aviadores anglo-americanos que descessem em solo alemão deviam ser fuzilados sem serem submetidos a conselho de guerra, se considerados culpados de atos terroristas". Nos termos das regras de guerra, conforme definidas na Convenção de Haia, uma potência ocupante pode obrigar a economia de um país ocupado a arcar com o custo real da ocupação, contanto que este seja compatibilizado com a economia do país em apreço. Os alemães excederam implacavelmente esse direito limitado, a ponto de produzir fome generalizada no seio do povo do território ocupado, mas os métodos empregados variavam de país para país, e de um momento para outro. Às vezes, especialmente no caso dos países ocidentais, os nazistas afetavam certa inclinação para a legalidade, pagando pelas mercadorias enviadas para a Alemanha, fosse por meio de empréstimos forçados, para os quais abriam créditos em "contas de compensação" espúrias, ou simplesmente contrabalançando o preço que deviam pagar com os custos de ocupação, avaliados de maneira arbitrária. Em outros casos, achavam que não havia necessidade de fingir. A pequena seleção de trechos que se segue, extraídos das provas apresentadas em Nuremberg, dissipará qualquer dúvida daqueles que pensam que o que se fazia eram transgressões esporádicas, e não uma política planejada e do conhecimento de grande número de pessoas. De um decreto das autoridades militares alemães na Polônia, datado de 27 de setembro de 1939: "A propriedade do estado polonês, das instituições públicas, municipalidades e sindicatos, de indivíduos e empresas poloneses, pode ser seqüestrada e confiscada." De uma diretiva de Göring, datada de 19 de outubro de 1939: "A sistemática do tratamento econômico das várias regiões administrativas é diferente, dependendo de se o país implicado será politicamente incorporado ao Reich Alemão, ou se lidamos com o Governo-Geral (da Polônia), que com toda probabilidade não fará parte da Alemanha... Deve-se retirar dos territórios do Governo-Geral todas as matérias-primas, sucatas, máquinas etc. que sejam de utilidade para a economia de guerra alemã. Tudo aquilo que não for absolutamente necessário para uma escassa manutenção da simples existência da população deve ser transferido para a Alemanha..." De uma ordem dada por Keitel a 16 de junho de 1941: A exploração [da União Soviética] deve ser realizada em larga escala, com a ajuda das sedes de campo e de locais, nos distritos agrícolas e petrolíferos mais importantes." De um discurso pronunciado por Rosenberg a 20 de junho de 1941: "O problema da alimentação dos alemães inegavelmente é prioritário na lista das exigências alemães no Leste, neste instante, e nisto as regiões do sul da Rússia e do norte do Cáucaso devem ajudar a equilibrar a situação de alimentos alemã. Por certo não nos sentimos obrigados a alimentar também o povo russo com os produtos dessas regiões. Sabemos que esta é uma necessidade cruel, que nada tem que ver com sentimentos humanitários." De um discurso pronunciado por Göring e dirigido aos Comissários do Reich para os Territórios Ocupados, a 6 de agosto de 1942: "Antigamente a questão era relativamente simples: costumava-se chamar de saque. Cabia à parte vencedora levar consigo o que tinha sido conquistado. Mas, atualmente, as coisas, parece, tornaram-se mais humanas. A despeito disso, voltaremos aos tempos antigos, para saquear, e saquear de maneira completa... "Neste momento a Alemanha controla os mais ricos celeiros que já existiram na área européia, e que vão desde o Atlântico até o Volga e o Cáucaso, terras hoje mais desenvolvidas e férteis que nunca, mesmo que algumas delas não possam ser descritas como celeiros... "Sabe Deus porque vocês não são enviados para lá, para trabalhar pelo bem-estar do povo sob sua responsabilidade. Vão para arrancar-lhes o máximo, para que o povo alemão possa viver... Esta eterna preocupação com o bem-estar do próximo deve acabar agora, e para sempre... Para mim é indiferente se, com relação a isto, vocês me disserem que o povo de lá passará fome." De uma anotação feita, a 7 de dezembro de 1942, no diário de Frank: "Se o novo plano de alimentação for levado a cabo, isto significa que só em Varsóvia e seus subúrbios 500.000 pessoas serão privadas de alimentos... "Eu me esforçarei para arrancar das reservas dessa província tudo o que for possível arrancar..." De um relatório, datado de 12 de fevereiro de 1944, feito por um oficial alemão na Iugoslávia ocupada, sobre o confisco de gado para a Wehrmacht: "1. Se forem privados de tanto gado, os camponeses não poderão cultivar seus campos. Por um lado, eles receberam ordens de cultivar cada centímetro de solo e, por outro, o gado lhes é rudemente confiscado. 2. O gado é comprado por preço tão baixo que os camponeses acham que não são compensados pela perda do mesmo". Numa categoria especial estava o saque sistemático de obras de arte, bibliotecas e arquivos; para justificar isto, nem a desculpa de estarem servindo ao esforço de guerra alemão servia. Quase um mês depois de iniciada a guerra, Göring (que se vangloriava de ser "Amante das Artes") deu ordens para registrar e confiscar todos os tesouros artísticos poloneses; e dois meses mais tarde seguiu-se uma ordem de rapina, assinada por Frank, "para benefício do Reich Alemão". Segundo um relatório oficial, "quase todo o tesouro artístico do país" foi tomado dentro de seis meses. Depois da bem sucedida invasão alemã no Ocidente, Rosenberg, além das suas outras funções, foi nomeado Chefe do Centro para Pesquisa Ideológica Nacional Socialista, criando-se uma organização, o Einsatzstab Rosenberg, ostensivamente destinada a recolher material para o Centro. Na verdade seu propósito era levar a cabo o saque de tesouros culturais numa operação coordenada. Em novembro de 1940, Göring deu instruções a Rosenberg, relacionando as diferentes maneiras como os espólios reunidos na França deviam ser distribuídos. Os dois primeiros itens da lista rezavam: "1. Os objetos de arte cujo uso será decidido pelo próprio Führer; 2. Os objetos de arte destinados a completar a coleção do Marechal do Reich". "Marechal do Reich" era o título favorito de Göring. Num decreto datado de 1º de março de 1942, Hitler ordenou que a Wehrmacht devia apoiar inteiramente as atividades do Einsatzstab. A operação foi coroada de êxito, conforme o Chefe da Seção de Arte Pictórica deixou claro em seu relatório final: "Durante o período de março de 1941 a julho de 1944, a equipe especial da Arte Pictórica realizou para o Reich 29 grandes embarques, incluindo 137 caminhões de carga, com 4.174 caixas de obras de arte". Que a população de um território ocupado seria responsabilizada pelos atos de indivíduos "que criassem dificuldade à ocupação alemã" foi anunciado cinco meses depois da invasão da França, por um decreto do Estado-Maior Geral, autorizando "quaisquer medidas que se possam levar a cabo". Uma dessas medidas era a guarda de reféns, oficialmente introduzida no Leste e no Oeste no outono de 1941. O fuzilamento de reféns foi em grande parte contraproducente, conforme o relatório de comandante militar alemão na Bélgica e Norte da França observou, depois de um ano de experiência: "Não há dúvida de que o resultado é muito insatisfatório. O efeito é menos repressivo do que destrutivo da sensação de direito e segurança da população; o abismo entre as pessoas influenciadas pelo comunismo e o restante da população está sendo transposto; tod os círculos estão-se enchendo de sentimento de ódio pelas forças de ocupação... " Todavia, à medida que crescia o movimento dos partisans, o sistema de reféns começou a ser aplicado com severidade cada vez maior, menos como um meio de combater a Resistência do que como expressão de fúria desconcertada. O acusado Frank estava na lista, com uma declaração pública de que "Não hesitei em declarar que quando um alemão for fuzilado, até cem poloneses também o serão", e depois de um "complô da bomba", em Roma (março de 1944), Hitler ordenou pessoalmente que de dez a vinte italianos deviam ser executados para cada alemão morto. Não é preciso fazer referência ao volume do conjunto de provas conseguidas sobre os atos de represália em larga escala cometidos contra populações civis, como a destruição das cidades de Lídice, Oradour-sur-Glane, ou Varsóvia, como também abundantemente provados estão os métodos terroristas mais comuns dos nazistas, remoção de pessoas, sem julgamento, para campos de concentração. Não precisamos citar amostras das centenas de documentos disponíveis a este respeito. Mas talvez devêssemos mencienar, como uma tentativa particularmente diabólica de solapar o moral dos países ocupados, o chamado "Decreto da Noite e do Nevoeiro" (Nacht und Nebel), de 7 de dezembro de 1941, assinado Keitel. Segundo esse decreto, todos os suspeitos de infração das leis de ocupação ou dos interesses do Reich, para quem a sentença de morte não estivesse declarada, deviam ser levados secretamente para a Alemanha e entregues à Sipo e SD de Himmler. Suas famílias jamais receberiam notícia alguma sobre seu destino. Arrancados de suas casas à noite, eles desapareceriam no nevoeiro do ignorado. Na época, a finalidade foi expressamente exposta por Keitel: "Em tais casas a servidão penal ou mesmo uma sentença de prisão perpétua, com trabalhos forçados serão consideradas sinal de fraqueza. A repressão eficaz e duradoura só pode ser obtida por meio da sentença de morte, ou tomando-se providências que deixarão a família e a população incertas quanto ao destino do infrator. A deportação para a Alemanha serve a esta finalidade". O fato de milhões de homens e mulheres terem sido arrastados para cumprir longos horários de trabalho na Alemanha não foi discutido no julgamento, mas alguns dos acusados tentaram manter a ficção de que todos ou a maioria desses operários se tinham apresentado como voluntários, Uma vez mais, a promotoria estabeleceu facilmente a verdade, com provas documentais obtidas de fontes alemães. No Governo-Geral da Polônia, uma ordem para deportação de trabalhadores para o Reich foi emitida em abril de 1940, e regulamentos idênticos foram feitos em todos os outros distritos orientais, tão logo conquistados. Sob a direção de Fritz Sauckel, que se tornou Plenipotenciário-Geral para a Utilização de Mão-de-Obra, em março de 1942, a mobilização de mão-de-obra estrangeira tornou-se tarefa de suma prioridade, a ser realizada com implacável eficiência. Vários administradores alemães, no desejo de não aumentar, o desespero da população, já bastante exacerbado, com a prepotência do ocupante, protestaram contra a brutalidade com que os homens de Sauckel agiam. Encontramos a seguinte descrição num desses documentos: "No ilimitado menosprezo pelo povo eslavo, usaram-se métodos de recrutamento que provavelmente só têm precedentes nos períodos mais negros do comércio negreiro. Iniciou-se uma caçada humana sistemática. Sem consideração por saúde ou idade, as pessoas eram embarcadas para a Alemanha, onde de imediato se verificou que mais de 100.000 tiveram de ser recambiadas devido a doenças graves ou outras incapacidades para o trabalho". Nos territórios ocidentais acupados, de início houve alguma resposta aos apelos alemães para que operários se dispusessem a trabalhar no Reich, embora não atingisse o suficiente para satisfazer a procura, e quando as pessoas souberam, por boatos, como eram realmente miseráveis e humilhantes as condições de trabalho dos operários estrangeiros na Alemanha, praticamente cessou o suprimento de voluntários. Daí em diante, aplicou-se a coação. Na melhor das hipóteses, o recrutamento tomava a forma que o próprio Sauckel descreveu aos seus companheiros da Junta Central de Planejamento, quando se discutiu a procura urgente e contínua de operários italianos, franceses e belgas: "... Passei mesmo a empregar e treinar toda uma equipe de agentes franceses e italianos, de ambos os sexos, que, mediante bom pagamento, tal como se fazia, antigamente, para 'seqüestrar', saíam à procura de homens e os dopavam, usando bebida, para despachá-los para a Alemanha". Na mesma reunião de 1º de março de 1944, Sauckel declarou que "dos cinco milhões de operários estrangeiros chegados à Alemanha, menos de 200.000 eram voluntários". O tratamento que os trabalhadores estrangeiros recebiam na Alemanha variava muito de lugar para lugar. A orientação oficial era para que "todos os homens fossem alimentados, acomodados e tratados de modo a produzirem o máximo possível com o mínimo concebível de despesa". Um memorando interno dos arquivos de uma fábrica da Krupp, em Essen, datado de março de 1942, reza: "Durante os últimos dias, verificou-se que a comida servida aos russos empregados aqui é tão pobre, que eles estão ficando cada dia mais fracos... Alguns russos são incapazes de colocar uma peça de metal no torno, por carecerem de força física. As mesmas condições existem em outros locais de trabalho que empregam russos". Como inúmeros elementos de prova testificam, este caso não era excepcional; o maltrato sério, especialmente de trabalhadores poloneses e russos, era generalizado. A acusação não negou a existencia de casos de tratamento bom, ou, pelo menos, relativamente humano. O importante é que o órgão que recebesse trabalhadores estrangeiros podia explorá-los como quisesse e dispor de sua vida como lhe aprouvesse. Era-lhe permitido empregar os mais rígidos métodos disciplinares, inclusive o castigo corporal. Acusado um trabalhador estrangeiro, na Gestapo, por desobediência, negligência ou impertinência", era o miserável levado para um campo de concentração, ficando o empregador com a prioridade no pedido de um substituto. Os trabalhadores estrangeiros não tinham direito de recorrer à lei ou a qualquer autoridade superior; na realidade, sua posição não era melhor que a de escravo. Por último, chegamos à "Solução Final da Questão Judia", um dos acontecimentos mais horríveis em toda a história e cuja motivação subjacente ainda está em grande parte inexplicada. Todavia, a maioria das pessoas conhece certos detalhes da história, e sua documentação, baseada nas provas apresentadas em Nuremberg, mas grandemente ampliada desde então, tem sido reproduzida e analisada em dezenas de livros de fácil obtenção. Aqui, citaremos, sucintamente, apenas trechos de três provas importantes, sendo uma delas um documento contemporâneo, e as outras, depoimentos feitos durante o julgamento. Elas dispensam comentários. 1. De um relatório do Brigadeführer da SS, Stroop, feito pouco depois da destruição do Gueto de Varsóvia: "Cheguei a Varsóvia a 17 de abril de 1943 e assumi o comando das ações a 19 de abril, às 8,00 horas, ações essas que tiveram início, naquele mesmo dia, às 6,00 horas... Quando invadimos o gueto pela primeira vez, os judeus e os bandidos poloneses conseguiram repelir as unidades participantes, inclusive tanques e carros blindados, por meio de uma concentração bem preparada de fogo... A resistência dos judeus e bandidos só podia ser reprimida por ações enérgicas das nossas tropas, dia e noite... Portanto, decidi destruir e incendiar todo o gueto... Os judeus normalmente abandonavam seus esconderijos, mas muitas vezes permaneciam nos prédios em chamas e só saltavam pelas janelas quando o calor se tornava insuportável. Então, com os ossos partidos, tentavam atravessar as ruas rastejando, indo para os prédios ainda intactos... Depois da primeira semana, a vida nos esgotos não era agradável. Muitas vezes, ouvíamos gritos vindos de onde estavam... Bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas nos bueiros e os judeus expulsos dos esgotos foram capturados. Grupos numerosos de judeus foram liquidados nos esgotos e nos abrigos com explosões. Quanto mais demorava a resistência, mais violentos se tornavam os elementos das Waffen-SS, da Polícia e da Wehrmacht, que sempre cumpriram seu dever de modo exemplar... Somente pelo trabalho contínuo e incansável de todos os envolvidos é que conseguimos desentocar 56.065 judeus, cujo extermínio pode ser comprovado. Este total eleva-se bastante, acrescentando-lhe os que perderam a vida nas explosões e incêndios, montante difícil de se precisar... A ação em grande escala terminou a 16 de maio de 1943, com a destruição da sinagoga de Varsóvia, às 20,15 horas". 2. De um depoimento de Rudolf Hoess, comandante do campo de concentração de Auschwitz de 1940 a 1943: "Recebi ordens para construir instalações de extermínio em Auschwitz em junho de 1941... Visitei Treblinka para ver a maneira como se efetuavam os extermínios... Outra coisa que fizemos melhor que Treblinka foi a construção de câmaras de gás, capazes de acomodar 2.000 pessoas cada uma, ao passo que, em Treblinka, as 10 câmaras de gás só comportavam 200 pessoas cada uma... Os que serviam para trabalhar eram mandados para o campo; os outros eram imediatamente enviados às câmaras da morte. As crianças em tenra idade eram invariavelmente exterminadas, pois eram incapazes de trabalhar, devido à pouca idade... Em Auschwitz enganávamos as vítimas, fazendo-as pensar que iam passar por um processo de despiolhamento. Elas naturalmente muitas vezes compreendiam nossas verdadeiras intenções, e às vezes tínhamos tumultos e dificuldades. Com freqüência as mulheres ocultavam os filhos sob as roupas, mas quando os descobríamos, mandávamos exterminá-los". 3. Da inquirição da testemunha Otto Ohlendorf, ex-Chefe de um dos Grupos-Tarefa Especiais (Einsatzgruppen) da Sipo e do SD: "Pergunta: Em seu testemunho, você disse que o Einsatzgruppen tinha o objetivo de aniquilar os judeus e os comissários, correto? Resposta: Sim. Pergunta: E em que categoria vocês colocavam as crianças? Por que razão as crianças eram massacradas? Resposta: A ordem era no sentido de exterminar toda a população judia. Pergunta: Incluindo as crianças? Resposta: Sim. Pergunta: Todas as crianças foram assassinadas? Resposta: Sim". A questão da responsabilidade A promotoria trabalhou quatro meses na elaboração do libelo acusatório, mas, quando este se completou, os acusados e seus advogados se inteiraram que tinham de enfrentar um conjunto de provas muito mais amplo e concreto do que haviam julgado possível no começo do julgamento. Uma negativa dos fatos mencionados na denúncia seria claramente inútil, o mesmo acontecendo com qualquer tentativa para diminuir sua gravidade. Só havia um campo de ação limitado para a estratégia defensiva, e dentro desses limites a defesa bateu-se tenazmente. Logo no início do julgamento, a 19 de novembro de 1945, os advogados da defesa aprovaram uma moção que esvaziava de valor a Carta do TMI na medida em que ela responsabilizava indivíduos por "crimes contra a paz": afirmavam eles que ela vulnerava o antigo princípio de que não deve ser tratado como crime, e por ele ninguém deve ser punido, o cometimento de qualquer ato que não tenha sido declarado criminoso por lei já existente quando de sua realização - nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege, em sua fórmula latina convencional. Lembremo-nos de que o problema fora motivo de debates na Conferência de Londres. Pela complexidade que envolve, não pode ser abordado adequadamente em poucas linhas. O tribunal rejeitou a moção da defesa, não sem algum arrazoado complexo, mas, entre os advogados, a decisão do tribunal causou mais crítica do que aprovação. A defesa tentou tirar o máximo partido de uma afirmação também muito conhecida: tu quoque ("você é outro"), considerando que, entre os crimes denunciados, havia pelo menos alguns também cometidos pelos aliados. Estritamente falando, a culpa semelhante, suposta ou comprovada, de outra pessoa, nunca pode ser admissível como defesa legal válida, mas seu efeito moral e psicológico pode ser considerável. Isto deve ter pesado muito em favor dos Almirantes Dönitz e Raeder. Ambos tinham sido acusados de "fazer guerra submarina irrestrita", e ambos foram absolvidos dessa acusação, alegando-se que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos haviam reconhecidamente feito a mesma coisa. É verdade que os advogados de defesa de Dönitz traçaram muito habilmente uma distinção precisa entre o argumento legal que estavam apresentando neste contexto e a sugestão do tu quoque, mas é de se duvidar que os juízes teriam aceito seu raciocínio, muito sutil, se não se tivessem preocupado em evitar a acusação de haver criado "uma lei para o vencedor e outra para o vencido". Questão mais importante era a defesa das "ordens superiores", pois, na maioria dos casos, os acusados poderiam escudar-se no argumento de que suas ordens e seus decretos obedeciam às diretivas de Hitler, que era o Chefe do Governo e Comandante Supremo das Forças Armadas. Nos termos do Artigo 8º da Carta do TMI, este argumento só seria visto como apelo no sentido de mitigar o castigo, e não se pode dizer que a Carta introduziu um novo princípio a este respeito. A posição foi a que o tribunal definiu em sua apreciação: "As cláusulas deste artigo estão em conformidade com a lei de todas as nações. Que um soldado tenha recebido ordens de matar e torturar, em violação ao direito internacional da guerra, nunca foi reconhecido como defesa para tais atos de brutalidade... O que interessa ao Direito Penal da maioria das nações não é a existência, ou não, da ordem, mas se ao executante era deferida uma opção moral". Essa regra jurídica é mal acolhida pela maioria dos Estabelecimentos Militares, mas na realidade representa o bom senso lógico. Um homem sujeito à disciplina militar ou, na verdade, a qualquer outra disciplina igualmente estrita, não se torna por isso um autômato sem responsabilidade por atos criminosos. Por outro lado, não se espera que ele questione uma ordem que não seja flagrantemente ilegal, tampouco se pede que ele seja um herói. O que ele pode fazer ou não, depende das circunstâncias. Ele tem o direito de levar em conta os riscos da desobediência, mas deve ponderá-los contra a gravidade do crime que lhe mandam cometer. Deve haver um equilíbrio razoável entre o dever legal de disciplina e a necessidade moral de evitar o crime. Quanto mais alta a patente, maior pode ser o campo de ação para uma "escolha moral" e no julgamento dos principais criminosos de guerra na realidade a defesa saiu-se mal com a alegação de "ordens superiores", mas na época isto não ficou reconhecido com tanta clareza. A tentativa de Göring de criar uma frente unida dos acusados foi frustrada, à medida que se tornavam as provas da acusação, em toda sua força, gradativamente conhecidas. Ninguém queria ser identificado com os horrores dos campos de concentração, dos assassinatos em massa e do trabalho escravo. O próprio Göring fez um último e decidido esforço para defender o regime nazista e a própria reputação, durante os dez dias em que esteve no banco dos réus (de 13 a 22 de março de 1946). Como a acusação fora de um tipo geral e político, os juízes julgaram correto que pelo menos um dos acusados pudesse responder na mesma moeda. Eles consideravam Göring o porta-voz mais adequado para o restante, e, assim, Göring pôde fazer longos discursos, em vez de responder sucintamente às perguntas dos advogados. Recorrendo às táticas e recursos que tentamos descrever, ele capitalizou prestígio no começo. No todo, também saiu-se bem na reinquirição feita por Jackson, que tão seguro estava da retidão de sua causa, que cometeu o erro fatal de perder a calma ao enfrentar a resistência esperta e arrogantemente desafiadora de Göring. Mas a reinquirição de Maxwell-Fyfe, que veio a seguir, foi fria, paciente e positiva, e sob seu interrogatório, totalmente profissional, a defesa de Göring logo começou a desmoronar. No final, também ele, tal como os outros haviam feito, foi reduzido a negar que estivesse ciente de fatos que, à luz da evidência, deve ter sabido, e a atribuir a responsabilidade principal dos piores crimes ao falecido Führer, que "deixou que Bormann e Himmler fizessem o que quisessem". Não restava dúvida alguma quanto a culpa de Göring, mas pelo menos ele aliviara o crescente tédio dos trabalhos pelo seu duelo enérgico com a acusação, de modo que muita gente não ficou desapontada quando ele conseguiu suicidar-se, antes de ser entregue ao carrasco. O material recolhido continha provas abundantes não só de que os crimes mais graves possíveis haviam sido perpetrados de maneira sistemática e centralmente controlada, como se afirmara, mas também que todos os acusados, pelo menos de modo geral, estavam implicados nesse sistema criminoso: assim, a acusação, que a princípio dependera de uma ampla interpretação de "conspiração", tinha certeza de que o julgamento terminaria com a condenação de cada acusado à sentença de morte. Mas os Juízes logo deixaram claro que não considerariam o envolvimento geral, qualquer que fosse sua importância moral ou política, suficiente para uma condenação penal; a acusação devia mostrar, em cada caso, que o acusado estava específica e concretamente implicado no crime que lhe era imputado. Difícil tarefa, pois devemos lembrar-nos de que, exceto em alguns casos, esses acusados nem haviam iniciado os crimes, pessoalmente, nem participado da sua execução física: eles eram acusados de terem proporcionado, consciente e voluntariamente, a ligação necessária entre as intenções de Hitler e sua realização final. Entretanto, conhecimento e boa vontade são estados de espírito cuja existência é extremamente difícil de se provar "sem qualquer dúvida razoável". Às vezes, um acusado em Nuremberg negava conhecer um acontecimento, mesmo quando se lhe mostrava a própria assinatura aposta no documento relativo ao mesmo. Quando isso acontecia, era inevitável a saída de que andava tão ocupado, que não tinha tempo para ler tudo o que lhe davam para assinar. Ou alegaria, para mitigar sua situação, que nos bastidores censurara uma ordem criminosa de Hitler ou tentara suavizar seu impacto, embora desse mostras de ávida obediência em público. Tais explicações quase nunca eram convincentes e muitas vezes eram patentemente absurdas. Ocasionalmente traduziam alguma realidade. De qualquer modo, deviam ser ouvidas e meticulosamente examinadas. E o tribunal fez isso durante outros sete cansativos meses. No fim as sentenças impotas pelo tribunal militar internacional foram as seguintes: Göring = morte Hess = prisão perpétua Ribbentrop = morte Keitel = morte Kaltenbrunner = morte Rosenberg = morte Frank = morte Fick = morte Streicher = morte Funk = prisão perpétua Schacht = absolvição Dönitz = dez anos de prisão Raeder = prisão perpétua Schirach = vinte anos de prisão Sauckel = morte Jodl = morte Bormann = morte (à revelia) Papen = absolvição Seyss-Inquart = morte Speer = vinte anos de prisão Neurath = quinze anos de prisão Fritzsche = absolvição Com dezenove condenações contra apenas três absolvições, a acusação podia dar-se por satisfeita. Por outro lado, o fato de que, num julgamento dessa natureza, dez dos vinte e dois acusados escaparam com vida, parece demonstrar o cuidado com que as questões legais em seu favor, e todas as circunstâncias atenuantes, foram levadas em conta. Na véspera de sua execução, Goering suicidou-se engolindo uma cápsula de veneno de cianeto de potássio - somente em 1967 é que foi revelado que ele havia deixado um bilhete explicando que a cápsula de veneno tinha estado o tempo todo em uma embalagem de pomada. Postumamente, seu cadáver foi içado à forca junto com os demais executados, num ato macabro autorizado pelos juízes do tribunal de Nuremberg. Em seguida, seu corpo foi cremado e suas cinzas jogadas num rio em Munique. Sem tentar a tarefa impossível de examinar todas as provas em detalhe, a sentença dava apenas uma simples indicação do raciocínio em que se fundaram determinadas decisões; uma característica insatisfatória, ainda que inevitável do julgamento. As condenações à morte foram dadas nos doze casos em que isso era esperado pela maioria das pessoas, face ao envolvimento dos acusados. Evidentemente, Göring era culpado sob todos os aspectos, não havendo praticamente nada a dizer-se como atenuante. "Göring muitas vezes, aliás quase sempre, foi a força motriz, só sendo superado pelo seu líder", afirma, na sentença, o tribunal. Ribbentrop, não satisfeito com seu papel na provocação da guerra, deu entusiástico apoio à política de opressão e ao genocídio desencadeados durante o conflito. Ninguém questionou a culpabilidade de Kaltenbrunner, o segundo homem das SS - o "estado dentro de um estado" - ou de Bormann, nos últimos anos do Terceiro Reich, provavelmente o mais poderoso dos lugares-tenentes de Hitler, ou de Rosenberg, Frank e Seyss-Inquart, os sátrapas de Hitler nos territórios ocupados. Frick fornecera os instrumentos administrativos para a incorporação e "germanização" dos países conquistados, cabendo-lhe também a responsabilidade administrativa pelo assassinato de vários milhares de "comedores inúteis", segundo o chamado programa de "eutanásia". Embora a influência de Streicher tivesse atingido o ponto culminante na Alemanha antes da guerra, ele esforçou-se bastante por encorajar o genocídio durante o conflito, justificando-se, portanto, sua condenação nos termos do item IV da Acusação. Sauckel encarregou-se de um programa que "envolveu a deportação para trabalho escravo de mais de cinco milhões de seres humanos". Com respeito a Keitel e Jodl, já se tem afirmado que, como soldados profissionais, eles não pertenciam à mesma categoria, embora se tivessem excedido muito no cumprimento das ordens superiores. Teriam eles, realmente, merecido sentença mais branda? Mesmo pelas poucas provas que temos citado, é evidente que a Wehrmacht estava profundamente envolvida nos crimes de agressão e terrorismo. Entre os oficiais alemães, e mesmo entre os soldados, houve quem, diante da barbaridade das cenas a que eram obrigados a assistir, protestasse. Mas tal senso de honra e coragem moral estava tristemente ausente na cúpula - onde deveria ser mais forte. Von Papen e Schacht prestaram grandes serviços ao nazismo durante a última fase da "República de Weimar" e no período conhecido como de "consolidação do poder". Alegaram, entretanto, desconhecimento das intenções gerais de Hitler. O tribunal os absolveu - embora ressaltasse, para verberar, a responsabilidade dos dois velhacos na implantação do nazismo - admitindo que eles já não estavam em posição de influência durante o período crítico, a partir de 1937. O juiz russo era pela condenação dos dois. Por último, alguns comentários sobre as sentenças de prisão. As de von Neurath (quinze anos) e Funk (perpétua) têm sido criticadas como relativamente severas. O caso de Neurath não diferia muito do de Schacht e Papen. Apenas era menos astuto. Funk não teve participação muita saliente no planejamento de guerra agressiva, embora fosse considerado culpado de haver tomado parte nos preparativos econômicos. O que mais pesou contra ele, no quadro das atrocidades, foi o fato de, como presidente do Reichsbank, haver consentido nos depósitos de valores que as SS subtraíam das suas vítimas. Dever-se-ia notar que von Schirach não foi condenado devido às suas atividades perniciosas como líder da Juventude Hitlerista, mas pela deportação de judeus de Viena, quando Gauleiter. Speer apoiara e usara o programa de trabalho escravo, mas é evidente que sua responsabilidade não foi tão grande como a de Sauckel. Os dois almirantes, Dönitz e Raeder, foram considerados culpados de terem sido "ativos na realização de guerra agressiva" (Raeder também de participar do planejamento). Ambos exigiam dos subordinados o cumprimento rigoroso das ordens criminosas de Hitler, mas não estiveram tão implicados nos crimes de guerra quanto os líderes do exército. Sequer foram indiciados por "crimes contra a humanidade". Nesta breve exposição não se focalizou a acusação de sete organizações, ou grupos, atuantes na Alemanha nazista. Quatro dos quais foram declarados criminosos pelo tribunal. Legalmente, essas acusações foram algo estranhas e só tiveram efeitos práticos nos julgamentos subseqüentes de criminosos de guerra. A filiação a qualquer das organizações criminosas seria, de futuro, considerada agravante de delito cometido, embora, por si só, não fosse classificada como crime. As provas apresentadas por ambas as partes têm sido importante fonte histórica, mas, em todos os outros aspectos, o valor dos trabalhos contra as organizações é duvidoso. Inferências Que conclusões podemos tirar de tudo isto, agora que já se passaram mais de cinquenta anos, desde o julgamento de Nuremberg? Já se disse o bastante para corrigir qualquer avaliação fácil e geral das qualidades do julgamento. Deveremos agora examinar os diferentes aspectos em separado, perguntando-nos, em cada caso, o que o julgamento pretendia alcançar e o que, na realidade, alcançou. A primeira pergunta deve ser: fez-se justiça? Em outras palavras, os acusados foram julgados imparcialmente e os padrões aplicados pelo tribunal estão em harmonia com o senso geral de justiça do nosso tempo? Cremos que a resposta é um Sim. À parte algumas nódoas, o julgamento foi escrupulosamente imparcial, como tem sido prontamente admitido mesmo por aqueles de quem se poderia esperar uma negativa - os acusados, seus advogados, a opinião pública da época na Alemanha. Em qualquer sentido comum da palavra, cada condenado foi realmente um criminoso, e plenamente merecedor de castigo. É verdade que um ponto controvertido ainda continua reaparecendo sempre que se discute o julgamento: o caráter retroativo das cláusulas da carta sobre "conspiração" e "guerra agressiva". É um argumento poderoso, pois a velha doutrina do nullum crimen sine lege não pode ser posta de lado como simples detalhe técnico legal. Mas, para os fins que colimamos, a questão não é tão apropositada como pode parecer à primeira vista. O que poucos compreendem é que a inclusão de "crimes contra a paz" não fez muita diferença no resultado do julgamento. Dos vinte e dois réus acusados de "conspiração", somente oito foram condenados por isso, mas nenhum deles o foi exclusivamente por esse motivo. E dos doze condenados nos termos do item II da Acusação, todos, menos Rudolf Hess, foram também condenados por participarem nas atrocidades nos termos dos itens III e IV da Acusação. O leitor se lembrará de que a aptidão mental de Hess ao se submeter a julgamento fora posta em dúvida. De qualquer modo, ele se comportou de maneira estranha durante todo o julgamento e se recusou a apresentar provas em sua defesa. Teria sido isso, talvez, que induziu os juízes (com o juiz soviético discordando) a absolver Hess de acusações bem documentadas de "crimes contra a humanidade", poupando assim a sua vida? Sim, o julgamento e as sentenças foram imparciais; mas naturalmente isso não subentende, necessariamente, que o veredicto e a sentença, no caso de cada acusado, foram incontestavelmente certos. Não podemos perder de vista a declaração feita pelo juiz francês, M. Donnedieu de Vabres: "A sentença, no caso dos grandes criminosos de guerra, é a expressão da justiça humana, portanto, relativa e falível. Ela reflete, como é normal, a boa fé, a competência, e talvez também os preconceitos dos seus autores. Talvez não seja idêntica ao julgamento da História ou ao julgamento de Deus. Contudo, as distinções e matizes que contém, e sua moderação relativa, provam que, pelo menos, não é a expressão de uma justiça empenhada em vingança". Esta não é a voz de um obediente agente governamental, mas, inequivocamente, a de um juiz, no sentido mais lato da palavra. Com suas sensatas restrições em mente, podemos dizer que o Julgamento de Nuremberg alcançou sua finalidade imediata: a uma avassaladora e potencialmente perigosa exigência de castigo ele deu primeiramente o alívio, na forma civilizada de um processo judicial genuíno. Graças à insistência no processo de lei adequado, e à manifesta integridade profissional do tribunal, foi possível "escrever a história do movimento nazista e confirmar acontecimentos incríveis com prova crível" com rapidez suficiente para dar o efeito político desejado. O ímpeto de um grande acontecimento público era necessário para criar o imenso aparelho pelo qual a prova fornecida por centenas de testemunhas e dezenas de milhares de documentos pudesse ser reunida e, analisada. E do ponto de vista da determinação histórica de fatos, a concepção ampla das questões do julgamento, por parte da acusação, ainda que aberta às críticas sob outros aspectos, foi uma vantagem clara. Quanto ao povo alemão, o julgamento foi como uma terapia política de choque. Até que ponto o cidadão alemão médio sabia dos crimes nazistas enquanto estes eram cometidos? Esta pergunta é muito controversa e difícil, sendo pouco provável que as pessoas jamais concordem quanto a uma resposta. Por certo, muito poucos tinham conhecimento pleno das atividades criminosas; por outro lado, muitos saberiam mais do que posteriormente se revelaram dispostos a admitir. Quanto à maioria, provavelmente pode-se dizer que era menos uma questão de ignorância do que um caso de não querer saber. Com os fatos nus expostos, não era mais possível uma fuga mental e os alemães de boa vontade puderam dedicar-se à tarefa de "enfrentar o passado" (Bewaltigung der Vergangenheit), um fator dominante da vida nacional alemã até hoje. E o Nacional Socialismo foi desacreditado de maneira tão cabal que as poucas tentativas de revive-lo tiveram de ser feitas sob bandeiras novas e diferentes. Não se repetiu o padrão da "República de Weimar", com todas as suas trágicas conseqüências. Entre os muitos fatores que têm contribuído para uma reabilitação política aceitável da Alemanha, o Julgamento de Nuremberg não é o menos influente. O que dissemos até agora equivale ao reconhecimento de que o Julgamento de Nuremberg foi muito bem sucedido - apesar de algumas críticas difíceis de contentar - em satisfazer as contingências de uma situação particular e única. Porém ele pretendera realizar mais, e sentimo-nos menos confiantes quando consideramos se podemos aclamá-lo como um progresso importante no caminho para o domínio da lei entre as nações. Do lado positivo, pode-se observar que o Julgamento de Nuremberg confirmou ou introduziu alguns princípios legais básicos que mais tarde foram reformulados pela Comissão de Direito Internacional da ONU, num "Esboço de Código sobre Crimes contra a Paz e Segurança da Humanidade." Citaremos apenas alguns que são de particular importância. À luz desses princípios, é agora inconteste, como não o era antes do Julgamento de Nuremberg, que o moderno direito internacional impede que os indivíduos culpados se abriguem por trás do conceito abstrato do Estado. "Crimes contra o direito internacional são cometidos por homens", dissera o tribunal, "não por entidades abstratas, e somente punindo os indivíduos que cometem tais crimes é que as normas do direito internacional podem ser aplicadas". A importância dessa decisão vai além da área da justiça penal; os advogados internacionais consideram-na um dos mais poderosos precedentes em apoio da tendência geral para dar direitos e responsabilidades diretas a indivíduos, bem como a Estados. O Esboço do Código também afirma o princípio de que os "grandes" criminosos de guerra, e não apenas a gente insignificante, devem estar dentro do alcance da lei. "O fato de uma pessoa que cometeu ato que constitui crime, segundo o direito internacional, ter agido como Chefe de Estado ou como oficial responsável do governo não o isenta da responsabilidade, nos termos do direito internacional". O Esboço do Código reconheceu que os "crimes contra a paz" são crimes internacionais específicos. Contudo, a definição de conceitos vagos como "conspiração" e "guerras de agressão" ficou para o futuro. Até aqui está tudo muito bom. Não há nada de errado nos Princípios de Nuremberg, exceto que são apenas princípios que não têm sequer a aparelhagem mais rudimentar destinada a pô-los em vigor. Os mesmos comentários são mais ou menos aplicáveis à Convenção do Genocídio adotada pela Assembléia Geral da ONU a 9 de dezembro de 1948. Para obter-se tal aparelhagem seriam necessárias definições legais viáveis e o estabelecimento de um tribunal penal internacional como medida óbvia; e isto fora realmente contemplado na resolução de 1946 da ONU, que dirigira a codificação dos Princípios de Nuremberg. Mas tentativas de transformar o Esboço do Código de 1950 num instrumento eficaz de justiça criminal, ainda que modesto, não tem passado de tragicomédia na qual se passa a responsabilidade de um para outro, entre a Assembléia da ONU, as várias Comissões Especiais e os estados membros. Desde 1952, sucessivas comissões têm-se esforçado por encontrar um conceito geralmente aceitável de "guerra de agressão", mas não há nenhum resultado à vista. Entre 1951 e 1954, duas comissões sucessivas consideraram a criação de um tribunal criminal internacional, mas a Assembléia decidiu que se adiassem os trabalhos de sua implantação até que o outro problema, o da definição de "agressão", fosse resolvido. Alguns afirmam que, a despeito desses desapontamentos, o impacto do Julgamento de Nuremberg ainda é perceptível. Baseiam-se no julgamento de My Lai e na iminente investigação de outras suspeitas de atrocidades cometidas no Vietnã. Mas esses trabalhos estão sendo feitos nos termos do direito norte-americano, não do internacional, e envolvem "barbaridades individuais" e "gente insignificante". Se existe qualquer conexão com o Julgamento de Nuremberg, é coisa muito remota. Não há como ignorar o fato de que a lei que foi aplicada aos alemães e japoneses depois da Segunda Guerra Mundial não o têm sido aos "grandes" criminosos de guerra de outras nações desde então, e não é provável que o seja em futuro previsível. Quando nos lembramos da discussão entre o Juiz Jackson e os delegados russos, na Conferência de Londres, parece-nos que, na prática, foram os últimos que saíram vencendo. E não poderia ser de outro modo. Num mundo tão desunido como o nosso, não se pode esperar que as nações entreguem seus líderes à jurisdição criminal internacional. O Julgamento de Nuremberg saiu-se esplendidamente como uma medida extraordinária em circunstâncias extraordinárias. Ele fez uma contribuição modesta, mas real, para o desenvolvimento de idéias progressistas na jurisprudência internacional. Devemos esperar que um dia tenhamos uma Organização das Nações Unidas digna do nome, e, quando isso acontecer, o Julgamento de Nuremberg também aparecerá como um precedente de importância fundamental. Fonte: Wikpédia |
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